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Números entrelaçados

Tradicional jogo formado por 28 pedras, numeradas de um a seis, cria um ambiente descontraído e informal, caracterizado pela camaradagem e pelas jogadas rápidas e pândegas entre os participantes

TEXTO Samarone Lima

01 de Novembro de 2016

"Luciano Mota, genro de seu Vital, e o artista plástico Iramaraí Vilela fazem parte da Liga de Dominó"

foto Helia Scheppa

[conteúdo da ed. 191 | novembro de 2016]

RECIFE, 28 DE AGOSTO DE 2016: O TORNEIO

São 11 horas de um domingo de sol na famosa venda de Seu Vital, cravada defronte à Igreja de Nossa Senhora da Saúde, no Poço da Panela. A movimentação é grande, por conta do I Campeonato da Liga de Dominó de Seu Vital. Oito duplas inscritas. Cada uma pagou a taxa de R$ 20,00, com direito à galinha à cabidela, guisada e sarapatel, feitos por Dona Severina, esposa do proprietário do lugar, especialmente para o evento. Além disso, troféu para campeão e vice, feito pelo artista plástico Gugu Ferrer. Como estava no meio das Olimpíadas, foi confeccionada uma “medalha”, obra em cerâmica do artista Iramaraí Vilela.

Carlos Vinícius Guedes Costa, o Seu Mini, de 51 anos (36 deles dedicados às pedras com números), está inquieto. Confere nomes dos inscritos, faz os sorteios, prepara o “chaveamento”, enquanto seus companheiros aguardam, batendo as primeiras carroças, quinas, ternos, duques.

Vital José de Barrros, ou Seu Vital, dono do estabelecimento, está preocupado. O genro Luciano ainda não chegou. Fato raro, pega um celular fora de moda e liga. “Te avisaram, não? Pois vem logo, que vai começar daqui a pouco. O quê? Tirasse Iramaraí.” Silêncio. Todos os jogadores dão risadas ou soltam gracinhas. Luciano, ao que parece, pegou um jogador conhecido por ser “pedra doida”. Joga sem lógica, não conta as pedras, atrapalhando a matemática que norteia cada partida.

Alguém pergunta se o esquema do Torneio vai ser open bar, mas a resposta é imediata – vai ser open geladeira mesmo. Cada cliente vai pegando suas cervas e contando em voz alta: – “Seu Vital, essa é a quinta, visse?”. O pequeno salão da venda está cheio. Depois de muitas idas e vindas, com o inseparável copo americano ao lado e cigarros ocasionais, Seu Mini fala em voz alta o regulamento:

– “Pessoal, está definido. É todo mundo contra todo mundo. A dupla vencedora é a que tiver mais vitórias”.

As primeiras críticas surgem. Que o torneio está desorganizado. Que era para ter feito o chaveamento das duplas antes. Do lado de fora, desolado, o empresário Rafael Donato foi “convocado”, pela esposa, para um almoço dominical em família. Ele disse que ela fosse sem ele, mas não teve jeito. – “Estou me sentindo péssimo”, diz, vendo a algazarra toda, os troféus, a expectativa. Seu Vital avisa que é meio-dia, o torneio vai começar. Seu Mini, apesar das críticas iniciais, está animado. No sorteio, ficou com o professor universitário Paulo Donizete, que é considerado um estrategista, mas, segundo o organizador do torneio, “é o jogador mais ranzinza da América do Sul”. O genro de Vital chega em cima da hora, vai fazer dupla com Silvinha, que já disse, pelo celular, o famoso “tô chegando”. A outra mulher inscrita é Vovó Irene, mas foi barrada, por causa de uma inesperada conjuntivite.

“Silvinha é a grande jogadora de Seu Vital. Joga mais que todos aqui. Minha dupla é uma das cotadas para ser a campeã”, avalia Luciano, que trabalha numa oficina mecânica.

Ivan Maciel caiu no sorteio com Marco Careca, que trabalha na portaria de um condomínio, a 200 metros do bar. Avalia que tem chance. “Meu parceiro é conhecido como ‘acochador’. Eu, como ‘sistema diferente’. Antes, eu era pedra-beba mesmo, mas fui melhorando. Hoje, sou do baixo clero. Não sou o melhor nem o pior”, comenta.

– “Meio-dia, vamos começar!”, avisa Vital, que vai jogar ao lado de Adirson contra a dupla Paulo e Seu Mini. “Seu Vital só ganha se botar o chapéu e botar o banco.” Nesse momento, o dono da venda já está retirando a cadeira de plástico e botando um banco verde. Em seguida, vai dentro de casa e volta com um chapéu azul. “Não disse? Vai ganhar.” O chapéu parece ter dado sorte. A dupla de Vital ganha pelo placar de 7 x 3.

Seu Mini sai e escuta as reclamações. Que ele não fez o chaveamento. Que o torneio está desorganizado. “O torneio é simples. O povo é que é complicado”, responde, puxando o caderno para improvisar um chaveamento. Uma regra, no entanto, deixa alguns jogadores preocupados: a repescagem. Mesmo com derrotas, as duplas teriam ainda novas chances.

O torneio começou a ficar longo demais, com partidas sucessivas, sem chegar às quartas de final, semifinal e final, como nos principais torneios. Seu Vital serviu os tira-gostos prometidos. As reclamações por jogadas erradas se sucediam. Mas, às 16h30, Seu Vital decretou que fecharia a venda, e que o torneio teria que reiniciar no domingo seguinte. Ele já estava cansado, e, pelo andar da tabela, o campeão só sairia na boca da noite.

 4 de setembro de 2016: Indefinições

Além do organizador do torneio, outros atletas também faltaram, por motivo de viagem. A Liga de Dominó seguiu normalmente, com os comentários sobre o domingo anterior, os problemas na organização, a expectativa para a grande final.

11 de setembro de 2016: Explicações e expectativas

No final da manhã, liguei para Ivan Maciel, para saber se finalmente teria a grande finalíssima. Ele estava a caminho de Seu Vital e me antecipou o problema.

“O motivo do cancelamento da decisão foi porque Seu Mini e o professor Paulo fizeram o torneio com chaves e repescagem. Eu mesmo ganhei duas partidas, perdi duas e ainda podia ter direito a mais uma chance. O torneio ia demorar horas para terminar. Seu Vital se arretou e cancelou.”

Cheguei à venda e perguntei a Seu Vital o que tinha ocorrido. Com as poucas palavras de sempre, ele foi ao ponto:

– “Vai ter outro torneio.”

– “Quando?”

Ele me olhou com aquela cara de invocado e respondeu:

– “Eu não quero dizer agora, não”.

A venda estava lotada. As duplas que jogaram no primeiro domingo, as que vieram no outro e a junção dos curiosos, também chamados de “perus”, que ficam olhando e comentando o jogo do lado de fora.

Seu Mini usou o direito de defesa:

– “Disseram que houve falcatrua, que o regulamento foi mexido no meio, para ajudar a dupla Paulo/Seu Mini. Mas não foi isso”.

Ele foi à geladeira, pegou sua cerveja, tomou um gole e prosseguiu:

“A questão é que o torneio tinha oito duplas. Cada dupla jogou quatro partidas ou mais. Isso gerou entre 32 e 35 partidas. Eu mesmo perdi três e ganhei duas. Como ficaria muito longo, o Torneio foi cancelado. Vai ter outro campeonato. Eu vou deixar que os ‘inteligentes’ façam as regras. Essa conversa de desorganização é intriga da oposição. Dizer que foi mal-organizado é um atentado à inteligência”.

Ele explicou a ausência no domingo anterior:

– “Quando eu soube que não tinha torneio, fui para Tamandaré com a família”. Mas ele fez a ressalva técnica: – “Só me ausentei em função do cancelamento”.

Seu Mini joga desde os 15. São 36 anos batendo pedras, ganhando e perdendo, jamais empatando, porque no dominó não há possibilidade de um jogo terminar empatado. Joga em Seu Vital às quartas à noite e domingos, a partir das 11h15.

Pegou o caderno das “buchudas” (quando uma dupla vence a outra por 6 x 0), e mostrou, com orgulho, seu levantamento. Este ano, já deu 19 buchudas e levou nove. “Sou o primeiro colocado no quesito ‘partidas Average’, que é o índice da diferença entre vitórias e derrotas”.

O burburinho estava imenso. Seu Vital esperou a poeira baixar e depois explicou quase como uma nota oficial:

“O torneio foi cancelado. E eu não sou o culpado. Vai ter outro, quando encontrarem um técnico que saiba administrar.”

Depois de uma pausa, a cutucada na organização:

– “Nunca vi uma dupla que perde três vezes e ainda tem chance”.

DOMINÓ É VIDA

Se o I Torneio foi “desunânime”, entre os jogadores da venda de Vital, há algo comum – o dominó faz parte da vida.

“É uma forma de me comunicar. Uma coisa que une as pessoas. Nunca joguei por dinheiro”, diz Seu Mini.

Ele começou em 1980, quando entrou no curso de Engenharia de Pesca, da UFRPE. “Paguei Dominó I, II, III e IV.”

Como todo jogador, tem suas manias. Vai a Vital às sextas (noite) e domingo, no final da manhã. Toda quarta-feira pode ser encontrado no Mercado Público de São Vicente Férrer.

Eduardo Navarro, mais conhecido como Duda a Milhão, diz que joga há 15 anos. Aprendeu no Poço, já que nasceu e cresceu em Boa Viagem, e só praticava frescobol.

– “Só hoje, dei duas buchudas”, diz, soltando uma gargalhada.

Ele não estava preocupado com o cancelamento. “O mais importante é isso: vai ter outro torneio.”

Para ele, o dominó é uma mistura. “São números que se entrelaçam com a profundidade de uma cruzada (jogada que equivale a quatro pontos no placar).”

Enquanto a conversa seguia animada, Seu Mini perdeu a 10ª Buchuda do ano, caindo uma posição no ranking, sendo ultrapassado por Luciano Mota.

– “Só não leva buchuda quem não joga”, diz, levantando da mesa.

O artista plástico Iramaraí Vilela diz que não lembra há quanto tempo joga. Admite que não sabia jogar – e que continua não sabendo.

“Mas eu evolui. Tenho um deficit de atenção muito grande, sou muito disperso. O dominó me fez prestar mais atenção.”

Ele olha para o dono da venda e pergunta:

– “Seu Vital, o senhor joga a próxima comigo?”

– “Jogo. Pedra em você.”

– “Estou jogando direito, Seu Vital.”

– “É tão bonzinho…”

No meio da balbúrdia, Seu Mini retorna e diz o que mais gosta no dominó – a interação social.

“Numa mesa, pode estar o reitor de uma Universidade com um gari, um empresário com um mestre de obras. E não adianta. Se o reitor fizer uma besteira, qualquer um na mesa pode dizer na hora – que jogada merda!”

Seu Mini e Paulo Donizete já escreveram até um projeto de programa, a ser exibido na internet. Vai se chamar A hora da buchuda.

A ideia é, a cada fim de semana, a produção ir a uma comunidade, fazer uma transmissão. Ver o que tem de culinária, a cultura do lugar, fazer entrevistas etc.

– “Falta só a verba”, diz Seu Mini.

No centro da venda, expectativa geral. A dupla Seu Vital/Iramaraí estava perdendo de 4 x 0. O risco de levar uma sonora buchuda era imenso.

– “Confie em mim uma vez na vida, Seu Vital”, diz Iramaraí.

A dupla vai se recuperando, empata, faz 5 x 4 e depois ganha de 6 x 4.

A venda faz uma festa. Iramaraí comemora com Seu Vital. Foi como um título.

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