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Toda a potência de Raduan Nassar

Este mês, em volume de 465 páginas, saem os dois romances do escritor de origem libanesa, a coletânea "Menina a caminho", mais dois contos e ensaio inéditos

TEXTO Luciana Veras

01 de Outubro de 2016

O escritor Raduan Nassar

O escritor Raduan Nassar

foto Divulgação

[conteúdo da ed. 190 | outubro de 2016]

 “Os olhos no teto, a nudez dentro do quarto; róseo, azul ou violáceo, o quarto é inviolável; o quarto é individual, é um mundo, quarto catedral, onde, nos intervalos da angústia, se colhe, de um áspero caule, na palma da mão, a rosa branca do desespero, pois entre os objetos que o quarto consagra estão primeiro os objetos do corpo…” As primeiras palavras de Lavoura arcaica são impactantes, como de resto é todo o livro, publicado em 1976 pela editora José Olympio. Elas permitem entrever a narrativa caudalosa urdida por Raduan Nassar, então um filho de imigrantes libaneses que, tendo cursado Direito e Filosofia em São Paulo, decidira-se por escrever um romance. Quem já folheou suas páginas, assevera: trata-se de um exercício que transcende a leitura, uma epifania para muitos, um acontecimento incontornável para outros tantos.

Neste outubro, a Companhia das Letras lança, em um volume de 465 páginas, a reedição da obra completa de Raduan Nassar – incluindo a novela Um copo de cólera (1978), os contos de Menina a caminho (1997) e três textos inéditos no Brasil: um conto publicado nos anos 1990 na antologia francesa Des nouvelles du Brésil, chamado O velho (escrito antes mesmo dos romances, em 1960), um outro conto, Monsenhores, e o ensaio A corrente do esforço humano, disponibilizado apenas na Alemanha, em 1987. Segundo a editora, a tiragem será de 6 mil livros, ao preço de R$ 74,90 e e-book por R$ 44,90.

É impossível prever, por hora, se essa tiragem inicial se esgotará rapidamente. O que se sabe é que, ante a notícia do agrupamento de todos os escritos de Raduan Nassar em um único tomo, rejubilaram-se os seus leitores e fãs. Um deles é o diretor Luiz Fernando Carvalho, responsável pela adaptação cinematográfica de Lavoura arcaica, lançada em 2001. “O encontro com um livro pode se tornar um acontecimento sagrado. Pode mudar sua vida e sua maneira de ver o mundo. Na história da humanidade, certamente, muitos livros marcaram milhares de pessoas. No meu caso, o livro foi Lavoura arcaica. Não haverá outro. O tempo passará, mas ele permanecerá dentro de mim, calando cada vez mais fundo a cada leitura”, revela à Continente.

Lavoura arcaica, o filme, trazia Selton Mello na pele de André, o jovem atormentado – “eu estava escuro por dentro, não conseguia sair da carne dos meus sentimentos” – que recebe a visita do irmão Pedro (Leonardo Medeiros) na pensão barata em que mora, após fugir da fazenda da família governada com austeridade pelo pai (Raul Cortez). Instado pelo primogênito, ele retorna à casa sobre a qual repousa o manto da obediência total à figura paterna: “que rostos mais coalhados, nossos rostos adolescentes em volta daquela mesa: o pai à cabeceira, o relógio de parede às suas costas, cada palavra sua ponderada pelo pêndulo, e nada naqueles tempos nos distraindo tanto com os sinos graves marcando as horas”.

Acontece que lá está Ana (Simone Spoladore, no filme), a irmã mais nova, causa da partida e da “fome” que o protagonista descreve: “era Ana a minha enfermidade, ela a minha loucura, ela o meu respiro, a minha lâmina, meu arrepio, meu sopro, o assédio impertinente dos meus testículos”, confessa André. “Poderia apontar os inúmeros motivos estéticos e de linguagem”, diz o cineasta, aludindo à indubitável potência dos arranjos linguísticos de Nassar – arranjos esses que ele respeitou ao escrever o roteiro, reunindo o elenco para ensaiar durante quatro meses a partir de leituras recorrentes do romance. “Mas, pensando bem, prefiro agradecer à misteriosa força de vida que ele evoca em redemoinho. Foi para onde Raduan me arrastou, para o núcleo deste redemoinho de mim mesmo, da própria vida que se desdobra em mais vida”, resume Luiz Fernando Carvalho.

O Festival do Rio prestará, este mês, uma homenagem à versão fílmica de Lavoura arcaica, exibindo-o em comemoração aos 15 anos de lançamento do longa. Para os admiradores da linguagem torrencial e catártica de Nassar, o filme serviu, e ainda serve, de condutor/indutor de novas leituras. “Lavoura arcaica é um livro para ser apreciado em imagens. Quando penso nele, sempre me lembro do quanto assistir ao filme enriqueceu ainda mais o conteúdo das palavras. Em regra, acontece o oposto: um livro muito bom sempre chega faltando ao cinema. Mas esse não foi o caso. Até hoje uso o trecho do livro em que o coroinha chega ao portal da igreja e no filme a imagem é dos pés em voo até que chegam à igreja… Ele me remete a momentos de ‘escapismo’ para realização vital. Toda sua obra é, para mim, uma experiência de assistir, com detalhes, através da escrita”, pontua a juíza pernambucana Renata Nóbrega, que decidiu reler Lavoura após ver o filme. “Precisei. Tornou-se melhor.”

A palavra “experiência” é utilizada com frequência para definir a relação que se estabelece com a obra de Raduan Nassar. É comum alguém perguntar “Já leu Lavoura arcaica?” com o mesmo assombro com que se pergunta “Já leu Grande sertão: veredas?”, ou, ainda, “Já leu A paixão segundo G.H.?”. E é provável ser tomado pelo mesmo sentimento quando se mergulha nessas três obras. Cotejá-lo ao mineiro Guimarães Rosa (1908-1967) e à ucraniana naturalizada brasileira Clarice Lispector (1910-1977) não é exagero. Raduan Nassar é artífice das palavras; sua habilidade em articulá-las provoca estupor tanto quanto os neologismos de Guimarães ou o adensamento existencial de Clarice. “Poucas vezes li um autor com essa capacidade de conhecer a força das palavras e usá-las de uma forma tão livre, tão original, tão explosiva”, observa o escritor recifense Bernardo Brayner, que mantém o site livrosquevoceprecisaler.wordpress.com.

“Uma vez, escrevi uma história sobre um homem e uma mulher que criam um idioma completamente novo para se comunicar. Quando dissessem ‘eu te amo’, seria a primeira vez que alguém diria ‘eu te amo’ naquela língua. Quando falassem na morte seria a primeira vez que alguém falaria na morte. Enquanto pensava na história lembrava da importância da palavra”, prossegue Brayner. Ele chama a atenção para “a dança de Ana no final de Lavoura arcaica” e lembra que “Ana, em árabe, quer dizer ‘eu’”. “Desde a primeira vez que li Raduan Nassar, não sou mais o mesmo. Li toda a obra em uma sentada há quase 20 anos e, com o passar do tempo, ela vai ganhando novas camadas: ‘Não tem quem não se toque, não tem quem não blasfeme contra a família, não tem quem não chore de nostalgia’”, cita o escritor.

UM COPO DE CÓLERA
Em Um copo de cólera, menos louvado do que Lavoura arcaica, porém capaz de gerar igual comoção, descortinam-se as entranhas de um relacionamento entre um homem e uma mulher – sem pudor algum, como se a linguagem fosse livre, aguda e fértil: “…e repassei na cabeça esse outro lance trivial do nosso jogo, preâmbulo contudo de insuspeitadas tramas posteriores, e tão necessário como fazer avançar de começo um simples peão sobre o tabuleiro, e em que eu, fechando minha mão na sua, arrumava-lhe os dedos, imprimindo-lhes coragem, conduzindo-os sob meu comando aos cabelos do meu peito, até que eles, a exemplo dos meus próprios dedos debaixo do lençol, desenvolvessem por si sós uma primorosa atividade clandestina, ou então, em etapa adiantada, depois de criteriosamente vasculhados nossos pelos, caroços e tantos cheiros, quando os dois de joelhos medíamos o caminho mais prolongado de um único beijo, nossas mãos em palma se colando, os braços se abrindo num exercício quase cristão, nossos dentes mordendo ao outro a boca como se mordessem a carne macia do coração”.

Irma Chaves é psicanalista e professora potiguar há muito radicada em Pernambuco, onde lecionou durante décadas no curso de Letras da UFPE. Já havia estudado Teoria da Literatura em Madri e Lisboa e dissecado a obra do poeta pernambucano Carlos Pena Filho (1929-1960), no mestrado na PUC/RJ, quando se deparou com Um copo de cólera. “A primeira vez que li, no final da década de 1970, foi a partir de um comentário em um jornal no Rio de Janeiro. Foi um impacto. Fiquei meio perdida, pois era uma coisa inteiramente nova. Na ocasião, era uma forma diferente de narrativa, que perdia às vezes quanto aos protagonistas, que por sua vez não tinham perfil definido. Essa linguagem nova me atraiu de imediato. Continuo gostando muito”, comenta à Continente. Anos depois, já tendo lido Lavoura arcaica, ela se confrontou com críticas que reclamavam da falta de estruturação dos personagens na obra do escritor. “Mas é do estilo dele buscar um outro tipo de aproximação com os personagens a partir da linguagem. É a palavra, a linguagem e a força da literatura que nos possibilitam, nesses livros, escutar e ler coisas diferentes, que de uma certa forma nos desafiam”, pondera Irma.

Em fevereiro deste ano, A cup of rage, primeira tradução inglesa para Um copo de cólera, foi publicada na Inglaterra e nos Estados Unidos (em janeiro de 2017, chegará às livrarias Ancient tillage, versão de Lavoura arcaica que a tradutora Karen Sherwood Sotelino esperou anos para ver nas prateleiras). Em maio, Raduan Nassar foi anunciado como vencedor do Prêmio Camões, que desde 1989 reconhece a literatura em língua portuguesa. Talvez essa láurea tenha impulsionado a Companhia das Letras a promover a reedição, pois o júri da premiação, concedida em conjunto pelos governos do Brasil e de Portugal, ressaltou a “a extraordinária qualidade da sua linguagem e da força poética da sua prosa”. Aos 81 anos, recluso e avesso a quaisquer rituais de fama, o escritor teria exclamado, ao saber do Camões e dos 100 mil euros acoplados ao prêmio: “Mas minha obra é um livro e meio!”.

Lavoura arcaica (decerto o livro desse “livro e meio”) é uma ode ao tempo: “o tempo e suas águas inflamáveis, esse rio largo que não cansa de correr, lento e sinuoso, ele próprio conhecendo seus caminhos, recolhendo e filtrando de vária direção o caldo turvo dos afluentes e o sangue ruivo de outros canais para com eles construir a razão mística da história”. É, também, uma reflexão profunda sobre a mítica impossibilidade de se contestá-lo. Nas últimas quatro décadas, nem o próprio Raduan conseguiu conter o fluxo expansivo e a contínua celebração da sua obra literária, que segue fecunda e gigante. Em 2016, não cabe, como ele mesmo fraseou, “menos ainda a cada um correr contra a corrente, ai daquele, dizia o pai, que tenta deter com as mãos seu movimento”. 

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