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Febre de contar

Somente ao voltar ao Recife, aposentado, Zito da Galileia organizou as centenas de páginas do seu testemunho histórico

TEXTO Samarone Lima

01 de Setembro de 2016

Zita lembra que, quando voltou a morar na Galileia, descobriu que ninguém sabia de nada das histórias de luta daquele lugar

Zita lembra que, quando voltou a morar na Galileia, descobriu que ninguém sabia de nada das histórias de luta daquele lugar

[conteúdo vinculado à matéria da ed. 189 | setembro 2016]

Zito começou a escrever seu testemunho à mão. “Escrevia, escrevia, escrevia”, diz, como quem tem uma febre de contar. Depois, comprou uma máquina de datilografia e foi organizando o material. Quando voltou de vez para Galileia, em 1999, com centenas de páginas, decidiu passar tudo para o computador. Ele conta que a maior parte do que escreveu é de coisas que lembra, mas aproveitou o período em São Paulo para se aventurar como pesquisador.

Nos dias de folga, costumava ir à Biblioteca Mário de Andrade ou à Biblioteca Vergueiro, em busca de livros sobre as lutas camponesas no Brasil. Numa delas, encontrou uma raridade: Os industriais da seca e os galileus de Pernambuco, do jornalista Antonio Callado. Foi na Vergueiro que encontrou uma foto microfilmada de João Pedro Teixeira, militante das Ligas, assassinado. Ao contrário do Recife, onde poderia ser perseguido se fosse reconhecido como “um dos galileus”, o fato de ser “descoberto” despertava o interesse. As Ligas tinham sido aniquiladas, mas a memória sobrevivia.

“Depois de pesquisar fui até a máquina de revelação e falei com o cidadão responsável, que pegou a foto e começou a olhar. ‘Que foto é esta?’, perguntou ele. Eu respondi: ‘De João Pedro Teixeira, um camponês que foi assassinado por latifundiários da Paraíba’. Ele disse: ‘E o senhor o conheceu?’. ‘Sim’, respondi. Ele disse: ‘Não venha me dizer que você foi das Ligas Camponesas!’. ‘Fui, sim senhor’, respondi. Ele me abraçou, levou-me a uma sala e me entrevistou por mais de uma hora.”

Mas só quando retornou ao Recife, já aposentado, foi que viveu o impasse. Como transformar todo aquele material em um livro? Como deixar as ideias mais organizadas? Em meio a tantas coisas que viveu, escutou e leu, como contar também a própria vida?

Foi quando resolveu buscar o jornalista e escritor Marcelo Mário de Melo, militante político, preso pela ditadura e que sempre mantém acesa a chama da memória, em livros, artigos, debates. E Marcelo tinha uma vantagem, para um livro que tratava da memória das Ligas Camponesas – a admiração pelos que lutam e uma vasta pesquisa que vem fazendo sobre as disputas pela terra no Brasil, desde as Capitanias Hereditárias.

Desde muito jovem, Marcelo acompanhava as Ligas, e admirava a capacidade oratória do deputado Francisco Julião, defensor ardoroso dos grupos. No livro, há um texto dele intitulado O tribuno Francisco Julião. Ao receber os originais, ele não teve dúvida em ajudar. Fez um cuidadoso trabalho de edição, deu sugestões e fez uma pesquisa complementar. “É um depoimento substancial, importante. Ele estava lá dentro e viveu o crescimento das Ligas, o apogeu e a repressão. Depois foi para São Paulo e voltou, para organizar a memória”, observa. “Ele era uma criança quando tudo começou. É também o olhar de um menino.”

Ele destaca o conteúdo do livro que mostra como as instituições, no Brasil, são marcadas pela escravidão. “Só agora estamos fechando a questão das empregadas domésticas. Os excluídos de hoje são escravos reciclados”, avalia. Lembra também que a repressão aos camponeses, antes e depois do golpe, teve um aspecto “paranoico”.“O simples fato de o governo Arraes aplicar a legislação trabalhista no campo, em plena década de 1960, foi um escândalo. Mas era uma legislação que já existia desde a década de 1940. A reação foi terrível”, lembra.

SILENCIADOS
Logo que voltou para morar na Galileia, terra que foi cenário de tantas lutas, Zito descobriu algo perturbador – a história daquele lugar estava silenciada. “Ninguém sabia de nada. Zero. Os moradores pouco ou nada sabiam sobre o que essa terra representa”, diz. Enquanto escrevia seu livro, Zito foi à luta. Resolveu que era preciso ter uma biblioteca no local, com o nome de José Ayres dos Prazeres, um dos personagens fundamentais para o nascimento da Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco. Comprou uma pequena filmadora e iniciou a produção de um documentário, contando a história das Ligas Camponesas.

O material, depois de editado, ganhou o título de A Liga que ligou o Nordeste. Ele fez várias cópias e começou a vender por R$ 10,00 cada. “Juntei dinheiro, comprei tijolos e comecei a construção da biblioteca”, conta Zito. Depois vieram apoios de profissionais de diversas áreas, como professores, comerciantes, cineastas, até que o espaço ficou pronto.“A partir daí, não faltaram mais visitantes à Galileia. Os professores começaram a trazer seus alunos de colégios e faculdades em comitivas. Já vieram estudiosos de diversos países.”

Em um cordel de sua autoria, intitulado Sonhando acordado, Zito fala sobre sua trajetória:

Galileia sinônimo de vitória

Foi ali minha leiga faculdade

Muitos anos nesta universidade

Formei-me na pressão da palmatória

No roçado da vida fiz história

Na enxada prestei vestibular

A peneira meu livro de estudar

Soletrando as palavras aprendi a ler

Meu anel de doutor ninguém vai ver

Tenho orgulho de ter nascido lá.

Zito contabiliza 5.500 livros nas estantes da biblioteca. Com a chegada do seu livro-testemunho, a Galileia vai ter uma versão de quem ali nasceu, viveu, ali viu amigos e parentes lutarem e morrerem, mas voltou para contar e lembrar. 

 

 

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