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Uma voz que merece ser ouvida

"Noturno sem música, romance do pernambucano Gilvan Lemos, escapa de um sentido restrito do regionalismo, em busca de um equilíbrio entre a crônica social e a reflexão existencial do protagonista

TEXTO Christiano Aguiar

01 de Agosto de 2016

O escritor pernambucano Gilvan Lemos

O escritor pernambucano Gilvan Lemos

Foto Rafael Gomes/divulgação

[conteúdo da ed. 188 | julho de 2016]

Noturno sem música, primeiro romance do escritor pernambucano Gilvan Lemos, que a Cepe Editora está relançando, narra a formação e as angústias de um jovem provinciano, Jonas. Criado em um sítio, desprezado pelo pai e órfão, muito cedo, da sua mãe louca, que morre colocando fogo no próprio corpo, Jonas é, por fim, adotado pelo irmão da sua mãe, o boêmio Leocádio, e levado até uma pequena cidade próxima de onde nasceu. Ao longo do romance, acompanhamos a sua vida de criança e adolescente tímido, metido em leituras e sonhando com uma vida melhor, embora sem saber ao certo que vida melhor seria essa. Como não poderia deixar de ser, Jonas aspira a uma carreira intelectual. Deseja se tornar um escritor e estudar no Recife, porém as suas precárias posses o impedem de seguir adiante. A ele só resta um emprego, como auxiliar de contabilidade, na fábrica do homem mais rico da região, Raimundo. O novo trabalho, contudo, só lhe traz mais tormentos. Jonas não só odeia o que faz, como também se apaixona, sem ser correspondido, por Marta, a jovem e bela esposa do seu patrão. Em pouco tempo, Jonas passa a criar ódio à vida em geral. 

Escrito em 1951 por um jovem Gilvan Lemos de 23 anos, o contexto de publicação do romance segue as dificuldades típicas que boa parte dos escritores brasileiros em início de carreira ainda hoje enfrentam. Segundo o depoimento do próprio Gilvan Lemos, o romance foi escrito em “um mês e onze dias”, usando uma máquina de escrever Hermes-Baby, cujo valor equivalia a todo o seu ordenado mensal. Em 1952, o livro dividiu o segundo lugar com O visitante, de Osman Lins, em um concurso promovido pelo governo do Estado de Pernambuco. A publicação, no entanto, aconteceria apenas quatro anos depois e às custas de um empréstimo feito pelo próprio autor à Caixa Econômica Federal. Publicado, o livro ganhou o prêmio Vânia Souto Carvalho, mas passou em branco pela crítica local e nacional. 

1956, aliás, é um ano importante para nossa literatura. Neste ano foram publicadas as primeiras edições de Grande Sertão: veredas e Corpo de baile, de João Guimarães Rosa; Canções, de Cecília Meireles, Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto (poema compilado na edição Duas águas); é de 1956 também a primeira montagem, no teatro Santa Isabel, da peça Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna. A estreia de Gilvan Lemos, portanto, acontece em um momento no qual se firmavam as principais conquistas dos diferentes grupos estéticos que, desde meados da década de 1920, buscaram renovar a nossa literatura. Não apenas os principais modernistas tinham se consolidado e escrito, a esta altura, boa parte das suas mais importantes obras. Autores como Clarice Lispector, Ferreira Gullar, Mário Faustino, Lúcio Cardoso e Lygia Fagundes Telles, entre outros, começavam também a despontar. É importante pontuar o quanto o romance de molde regionalista vai perdendo a sua força e se torna cada vez mais epigonal. Abordagens introspectivas e/ou experimentais no campo do romance se fortalecem, por exemplo. Ocorre, além disso, um contínuo distanciamento da representação do mundo rural em prol de uma atenção maior para o mundo urbano, em nossa ficção. 

Neste sentido, Noturno sem música pode interessar a quem pesquisa a história da literatura brasileira, por ser justamente uma obra na qual podemos perceber um amálgama entre tendências psicológicas, intimistas, e a nossa melhor tradição romanesca costumbrista, social e regional. Há de fato duas linhas de força básicas aqui: um mergulho, por um lado, na mente conturbada do seu protagonista Jonas, e um relato, quase jornalístico, por outro, da vida de uma típica cidade do interior pernambucano. É a segunda vertente que melhor funciona no livro, no qual vemos uma série de cenas que compõem muito bem um quadro de costumes e de denúncias das condições de vida do interior pernambucano na primeira metade do século XX. Quando estamos, no entanto, em demasia na companhia de Jonas e das suas obsessões, Noturno sem música acaba se tornando menos interessante, porque aí se exige uma maturidade de romancista que Gilvan Lemos ainda não possuía em 1951.

REGIONALISTA?
Neste ponto da discussão, é possível levantar a pergunta: seria Noturno sem música um romance regionalista? A resposta dependerá de qual conceito de “regionalismo” cada leitor adota em sua própria reflexão, mas Noturno sem música me parece escapar de um regionalismo no sentido restrito do termo. Embora as marcas do sotaque nordestino sejam fortes em sua linguagem, embora as cenas da vida no agreste pernambucano tenham destaque, a intencionalidade do romance reside em uma busca de equilíbrio entre a crônica social e a reflexão existencial do seu protagonista. Como quase toda a literatura brasileira daquele momento, a questão do nacional deixa suas marcas também em Gilvan Lemos, sem dúvidas. Mas ela não é um ponto de chegada. Do mesmo modo, as marcas da cor local não são tratadas com o exotismo dos regionalismos menores, nem há uma obsessão em vincular a essência de uma cultura nacional à região nordestina. Além do mais, Noturno sem música se interessa pela vida urbana, embora não seja a urbanidade do Recife, mas sim a de uma cidade que seria equivalente à São Bento do Una do próprio Gilvan. 

Os painéis sociais construídos pelo romance são breves e eficientes. E, não obstante os coadjuvantes pecarem pela unidimensionalidade, cumprem bem o papel de ajudar a compor estes quadros sociais. É o caso dos funcionários da fábrica, por exemplo, e em especial da tocante cena que envolve o filho de um deles, cujo apelido é Pelado. Quando Jonas, em um dos raros momentos nos quais consegue sair do seu próprio narcisismo, se comove com a pobreza da criança e lhe dá um queijo de presente, se surpreende com a atitude dela. Pelado, após segurar o alimento “como quem segura uma imagem de santo”, esconde o queijo e se recusa a comê-lo. Após muito insistir, a criança lhe revela o porquê, dizendo: “Vou levar pra mãe”. 

Quanto mais simples a escrita de Gilvan se torna, mais as suas imagens brilham: “À tardinha o movimento da feira esmorecia. Matutos que se retiravam, estalando o relho no animal carregado; cachaceiros cantando pelas bodegas; raparigas nas esquinas, pintadas, fumando, na tentativa de suas últimas conquistas amorosas; cachorros a farejar montes de basculhos; adeuses, despedidas, lembranças às comadres”. Sua linguagem de estreia já tem a fluidez do melhor José Lins do Rego; as palavras e expressões regionais fazem sentido na boca das suas personagens, sem soarem como adornos desnecessários. Uma das melhores, se não a melhor cena de Noturno sem música, descreve a primeira vez na qual Jonas vê um avião voando: “O ronco enchia a cidade. Corria gente de toda parte, meninos gritavam exaltados: Tou vendo, tou vendo! Consegui avistá-lo, pontinho perdido no azul imenso”. Como se fosse um pequeno conto do realismo mágico contrabandeado para o interior do romance, a passagem do avião mobiliza toda a cidade. As ruas se enchem de gente a fim de observar o prodígio; as crianças gritam; teorias são criadas para explicar sua passagem pela região: “É capaz de estar perdido [...] Acontece. Às vezes perdem a rota”. 

É uma cena-chave para entendermos Noturno sem música. Este não é apenas um romance de um período de mudanças no desenvolvimento do romance brasileiro; a própria obra tematiza transições. A chegada da vida moderna ao interior, exemplificada na cena acima, é só um destes momentos. Há outros: os limites fronteiriços entre o amor e o ódio; a ambiguidade, vivida por Jonas, entre o delírio e uma vida cotidiana sem graça; a exuberância do sexo versus a certeza de que cabe à carne a putrefação; o entrelaçamento da vida com a morte, por fim. Logo, o principal conflito do romance não é o fato de Jonas nutrir um amor não correspondido por uma mulher mais velha. Nem é, tão somente, a sua orfandade, ou a falta de perspectiva de ascensão social. Jonas afunda porque não consegue negociar com o mundo à sua volta. Além disso, ele não sabe lidar com os próprios sentimentos. Jonas se recusa a amadurecer. Não há atenuantes em sua visão de mundo; não há a compreensão da existência de ciclos que se alternam em movimentos contraditórios, porém necessários. Falta-lhe paciência, justamente porque lhe sobra tempo. Assim, Gilvan Lemos criou uma personagem cuja explosiva mistura de frustrações e radicalismo nos diz respeito hoje, em pleno 2016. Jonas é um pequeno “homem do subsolo” do Agreste pernambucano, um homem para quem a vontade de destruição é a única forma de escape. 

Infelizmente, quando tenta alçar voos existenciais mais amplos, Noturno sem música se perde em especial nos seus principais personagens. Falta a Jonas, por exemplo, uma ironia, ou uma gravidade metafísica, que encontramos nos homens atormentados do Dostoiévski de Memórias do subsolo ou de Crime e castigo. Devido a esta ausência, a convivência prolongada com nosso principal protagonista se torna cansativa. Os demais personagens que orbitam ao seu redor, embora interessantes como tipos sociais, não recebem maior aprofundamento. Às mulheres, em especial, cabe um papel bastante secundário. Elas são pouco mais do que mecanismos que geram conflitos no romance – me refiro a Marta e a Inês, mãe de Jonas –, ou que servem como gatilhos de comoção sexual. 

Apesar destas ressalvas, a republicação de Noturno sem música, ao mesmo tempo em que se republica o seu segundo romance, Jutaí-Menino, também pela Cepe Editora – que vai reeditar toda a obra do autor, é uma iniciativa muito bem-vinda. Não apenas para que possamos entender os primeiros passos de um bom escritor, cuja obra merece novas leituras e releituras, mas sim porque há na vida errática de Jonas e da sua cidade uma força bruta atestando que, mesmo em suas páginas de juventude, Gilvan Lemos é uma voz que merece ser ouvida. 

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