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Pintura e realidade

TEXTO José Cláudio

01 de Agosto de 2016

“A pintura é sempre uma escolha, uma ótica pessoal, e nisso vai toda a diferença, de acordo com os sentimentos, a afetividade”

“A pintura é sempre uma escolha, uma ótica pessoal, e nisso vai toda a diferença, de acordo com os sentimentos, a afetividade”

Fotos Reprodução

[conteúdo da ed. 188 | agosto de 2016]

Antecipação maravilhosa do descompromisso da pintura com a realidade é a de “Orbaneja, um pintor que estava em Ubeda, que, quando lhe perguntavam o que pintava, respondia: ‘O que sair’; e, se porventura pintava um galo, escrevia por baixo: Isto é um galo para não pensarem que era uma raposa”. Dom Quixote, cap. 71. Quem me falou do episódio foi o pintor Francisco Brennand. Aliás Dom Quichote, com ch em vez de x nesta edição que estou lendo da biblioteca da Faculdade de Direito do Recife (Lello & Irmão, Ltda., Porto, 1929), o que deve ter servido a Bastos Tigre para adotar o pseudônimo de Dom Chicote.

O mais radical de todos foi Maurice Denis (1870-1943), que Lula Cardoso Ayres conheceu em 1925. Aos vinte anos de idade saiu-se com essa: “Lembre-se que uma pintura, antes de ser um cavalo, um nu, ou qualquer espécie de anedota, é essencialmente uma superfície plana, coberta por cores dispostas em uma certa ordem” (Clarival do Prado Valladares, Lula Cardoso Ayres/Revisão Crítica e Atualidade, 1978, Construtora Norberto Odebrecht S.A.). Engraçado, o português Fernando Pessoa disse a mesma coisa em relação ao texto impresso: “Livros são papéis pintados com tinta”, citado por José Paulo Cavalcanti Filho, Fernando Pessoa/uma quase autobiografia (Editora Record, 2011).

Há inúmeras alusões a esse descompromisso, ou visão além da realidade, o que sempre acontece, pois a pintura é sempre uma escolha, uma ótica pessoal, e nisso vai toda a diferença, de acordo com os sentimentos, a afetividade, a emoção do momento, o convívio do pintor com essa mesma realidade que para uns significa muito e para outros nada, é sempre uma construção “a partir de” e não a coisa em si. A própria realidade assim chamada tem sofrido contestações. Leonardo da Vinci já dizia: “O ar está cheio de um número infinito de linhas radiantes, retas, que se cruzam e se tecem juntas sem jamais coincidirem completamente; são elas que representam a verdadeira forma da razão de ser de cada objeto” (Alfred Barr, citado por Michel Seuphor, Dictionnaire de la peinture abstraite, Fernand Hazan 1957, Paris).

Contudo, um fantasma ronda a arte da pintura desde milênios. Na Grécia Antiga um pintor visitando outro se deparou com um quadro com uvas tão bem pintadas que até enganavam os passarinhos, que vinham bicá-las, pensando serem verdadeiras. Algum tempo depois o pintor do quadro das uvas é convidado para ver um quadro no atelier do rival. Chegando lá, vê um quadro coberto com um pano e pergunta se pode levantar o pano para ver o quadro. Só então, ao tentar levantar o pano, percebe que o pano é pintado, gabando-se então o pintor deste segundo quadro: “Tu enganaste um passarinho. Eu enganei um pintor!” Noutra versão, o pintor pintou, em cima da pintura, uma mosca tão bem pintada que o espectador procurava tangê-la e somente aí descobria que era pintada. Era certamente a esse tipo de perfeição a que se referia Cézanne ao dizer: “Sei que devo trabalhar e fatigar-me mas não por esse ‘acabado’ que os imbecis admiram”. Mas nunca deixou de existir essa outra corrente ilusionista, que quer dar ao espectador a ilusão da realidade, ou de um tipo mais vulgar de realidade, não por ignorância ou imaturidade, lembrando-me do movimento hiper-realista ou fotorrealista, quando o elogio “parece uma fotografia” deve valer como elogio, creio eu.

Essas ideias começaram a rondar minha cabeça ultimamente por motivo das exposições, cronologicamente, na ordem em que as visitei, Barravento, pinturas de Sílvia Pantano, e Natureza, encantos e cores, de Pollyanna Ferreira.

A de Sílvia Pantano na Moma/Galeria de Arte, Av. Rosa e Silva, 670, sobreloja 107, de 29/04 a 10/06. Dela diz Maria de Lourdes Hortas: “O artista tem sempre um novo olhar – encantamento, surpresa, espanto – para os cenários do cotidiano, selecionados pela ótica do seu sentimento. Da sua varanda, voltada para a imensidão azul do mar de Candeias, Sílvia Pantano, num dia qualquer, deu-se conta de que os barcos, dia e noite indo e vindo sobre aquelas águas de marés cheias ou vazantes, navegações que sua alma contemplava, por madrugadas e crepúsculos, rústicas embarcações, da colônia de pescadores instalada nos arredores, com formas e cores simples e rudes, ora mansamente repousados sobre a areia, ora regressando da peregrinação diária, num tempo não muito longínquo, iriam desaparecer, tragadas pela cega inclemência da modernidade: onde e quando, dentro de alguns anos, alguém mais poderia ver as cenas que dilatavam o seu coração?”

A exposição de Pollyanna Ferreira foi no Instituto Ricardo Brennand. Nela, na pintora, há um maior empenho ilusionista, carregando no trompe l’oeil; aliás, num dos quadros, um trompe l’oeil às avessas, num quadro representando umas mangas-espada, quando rasga a lona da tela e simula a casca da manga rasgada e levantada, a “realidade” imitando a pintura, no caso. Também, noutro quadro, tampa com madeira uma janela real e pinta no lugar um quadro simulando a mesma janela, através da qual se tem uma vista da paisagem, pintada esta, em lugar da real. Também num quadro de pitangas substitui o talo da fruta por um de verdade. Diz a pintora: “Sou filha da terra, nasci em Recife no ano de 1977. (...) Gosto de expressar o que vejo de forma natural e simples. Acredito serem elementos que não podem faltar em meu trabalho. Adoro brincar com as possibilidades do efeito tridimensional. Fazer experiências me motiva. A cada obra sinto que preciso me superar. Essa busca incessante é como renascer, não faço pinturas tentando impressionar, sim desafiar-me, para me sentir mais viva”..

 

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