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Uma arte relacional

Exposição "Dream come true", da artista japonesa Yoko Ono, está em cartaz no Malba até 31 de outubro, abrangendo 60 anos de carreira

TEXTO Mariana Camarotti

01 de Julho de 2016

Performance intitulada “Cut Piece”, realizada por Yoko em 1964, no Carnegie Hall

Performance intitulada “Cut Piece”, realizada por Yoko em 1964, no Carnegie Hall

Foto Minoru Niizuma

[conteúdo da ed. 187 | julho de 2016]

Passaram-se 60 anos desde que Yoko Ono começou a sonhar com um mundo melhor e a tratar de sensibilizar o público para que este se tornasse ativo em sua obra e, assim, fosse somado a um movimento global em defesa da paz, da conservação do meio ambiente, da sanidade mental e da igualdade de gênero. Observando o mundo e lendo as notícias e redes sociais de hoje, o sonho de Yoko – compartilhado com seu marido e parceiro artístico John Lennon – continua sendo mais do que atual. É necessário e urgente, na medida em que países sucumbem em conflitos armados, milhões de migrantes e refugiados se deslocam, a temperatura do planeta sobe e histórias de violência dos mais variados gêneros aterrorizam a sociedade, somando-se a estes problemas o fato de esta mesma sociedade exasperar-se em gestos de intolerância em rede virtual. 

Pioneira no questionamento do conceito e do objeto de arte, Yoko rompeu fronteiras tradicionais que dividem disciplinas artísticas, concentrando-se na arte conceitual e participativa. Não importa o material – texto, escultura, filme, música, instalação – ou o canal –, exposição em museu, cartazes em via pública ou redes sociais. 

A linguagem clara, universal e poética é sua matéria-prima para transmitir ideias ao público, que, por sua vez, precisa atender às suas solicitações e adotar um papel ativo para que as obras se concretizem. Logo, esta obra se esfuma e o que resta é a sensibilização, a mensagem, a mudança de conceito.

Coerente com seu engajamento político e social e fiel à arte conceitual, essa japonesa de 83 anos, que se mantém em plena atividade, defende em sua obra a filosofia de que um indivíduo é parte do outro, que devemos nos conectar física e espiritualmente e que as ações feitas de forma coletiva trazem maiores benefícios individuais e para a sociedade.

Yoko é a autora da ambiciosa mostra Dream come true, em exposição no Museu de Arte Latino Americana de Buenos Aires (Malba) até 31 de outubro. É a primeira vez que a sua obra desembarca em território argentino e está previsto que uma exposição sua seja realizada também no Brasil. Com mais de 80 trabalhos, representados em objetos, eventos, rituais e ações, a coleção é resultado de uma exaustiva pesquisa do museu e da artista, das seis décadas de trabalho, e traz suas “instruções” mais importantes. 

Em Imagine a paz, o púbico deve marcar, em um enorme mapa, o lugar em que deseja que haja paz no mundo. Em sua Pintura de teto, pintura do sim, de 1966, através da qual ela conheceu Lennon, o público recebe a instrução “suba a escada, observe a pintura do teto com uma lupa e encontre a palavra Sim”. Essa mesma palavra é espalhada em cartazes em avenidas e em botons, como uma instrução e ação positiva, um desejo de afirmação e autoafirmação.

Também fazem parte da mostra Peça voo (com a instrução “voa”) e Peça sorriso (“passe uma semana rindo”), ambas de 1963, e o filme Sorriso (1968), no qual se vê a cara de John Lennon em primeiro plano, com a boca entreaberta e indiferente no início, culminar com um gesto de franca alegria. Estão também presentes suas peças sussurradas, com as quais, desde 2001, incentiva que as pessoas usem, penduradas às roupas, palavras como Sonhe, Toque e Ria.

“Yoko é uma artista de uma coerência incrível, com obra de características próprias, com conceitos, ideia de arte e compromisso político que se desprendem da sua própria arte”, atesta um dos curadores da mostra, Agustín Perez Rubio. “O uso de materiais é o que menos importa. A linguagem é sua primeira ferramenta, e daí ela escolhe se compõe em instalação, escultura, som ou filme. Seu compromisso é a conexão de um com outro e isso tem a ver com a cultura oriental”, completa.

O título da mostra – Dream come true – pode ser lido como uma metáfora da sua trajetória artística, mas também uma referência à atual situação mundial, que pode ser melhorada por meio de uma participação coletiva e intercâmbio criativo. 

“É importante notar que, se as instruções de Yoko são voltadas para o mundo em si, é porque também o levam e condensam. Não são uma criação em si mesma que pretende ser meramente comunicada, mas tentam devolver, em quem as escuta, a consciência desse lugar, desse mundo em que estão”, interpreta Perez Rubio. “Por isso, a obra dela pode ser lida como um corpus teórico com uma agenda política, desde o começo até hoje.”

ALÉM DO MUSEU
A mostra extrapola as paredes do Malba e ganha as ruas com frases e instruções – como “Renda-se à paz” – transmitidas em rádio e impressas em jornal, assim como mensagens transmitidas pelas redes sociais.

Yoko começou a mobilizar o público dois meses antes da inauguração, com uma convocatória pela internet chamada Ressurgimento. Nela, convida mulheres de toda a América Latina a enviarem fotos dos seus olhos e um relato sincero, com suas próprias palavras, de alguma violência de gênero que tenham vivido. A experiência, realizada recentemente na Cidade do México e que seguirá por outros países até tornar-se um livro, busca liberação e cura do trauma através da história compartilhada. As capturas dos olhos e textos enviados estão expostas na instalação Ressurgimento na mostra no Malba.

“As obras de Ono são fundadas em um conceito que vai se cristalizando, não tem uma dimensão psicológica, associações, subjetividades. Sua elaboração material está determinada, em boa medida, pelo espectador e participante”, explica um dos curadores, Gunnar B. Kvaran, que também é diretor do Museu Astrup Ferley, de Oslo.

VIDA, AMOR E OBRA
Nascida em 1933 em Tóquio, Japão, Yoko Ono mudou-se com a família para os Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial. Viveu entre as cidades de Tóquio, São Francisco e Nova York, sendo esta última a que escolheu para viver. Sua família queria que estudasse música, mas ela preferiu seguir seus sonhos e tornou-se a primeira mulher matriculada no curso de Filosofia da universidade japonesa Gakushuin. Mais tarde, formou-se em Poesia e Composição Contemporânea no Sarah Lawrence College, Nova York.

Na cosmopolita e frutífera cidade para a arte de vanguarda, iniciou sua carreira ligada à arte conceitual e passou a fazer parte do grupo neovanguardista Fluxus. Participou de performances e de happenings dos anos 60. Sua obra ganhou projeção e atraiu interesse, incluindo o de Peggy Guggenheim e Marcel Duchamp. 

Também capturado pelo seu trabalho, John Lennon quis conhecer a artista, o que aconteceu em 1966. Os dois se apaixonaram e compartilharam ideias, bandeiras de paz e amor e a vida artística. Vinculados à música pop, eles criaram a banda Plastic Ono Band, realizando eventos em defesa da paz mundial, como o Bed In, em Amsterdã (1969) e Montreal (1968). Deitados numa cama, eles convocaram a mídia e o interesse do público clamando contra a guerra e a favor do amor. Yoko realizou filmes conceituais, como Fly, e discos marcados pelo experimentalismo, alguns deles junto com Lennon.

Após o assassinato do ex-beatle, em 1980, ela reduziu sua produção e deixou entrever em sua obra seu sentimento de perda. Porém, a partir de 1989, retoma exposições, com esculturas relacionadas à sua produção da década de 1960. A partir dos anos 2000, mantém-se muito ativa com intervenções em espaços públicos, internet e colaboração com artistas musicais.

Sua filosofia motivadora e instruções positivas, coesas, permaneceram em uma linha de tempo e não se contaminaram pelas experiências vividas – mudança de país, ser vítima de preconceito e ter testemunhado o assassinato do marido – e a carga negativa que Yoko recebeu ao longo da vida. 

Acusada e odiada por muitos, por supostamente ter separado os quatro garotos de Liverpool, e lembrada apenas como “a viúva de Lennon”, a artista soube construir uma obra autêntica e fértil, emanando otimismo, serenidade e amor. Monta e inaugura exposições pelo mundo, enquanto nutre diariamente seus 4,8 milhões de seguidores no Twitter com mensagens de inteligência emocional, libertação e afeto, mantendo viva a memória do seu grande amor. 

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