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As últimas criações do percussionista genial

Falecido no dia 9 de março, Naná Vasconcelos deixa como legado uma obra singular, além de um álbum inédito, que nasceu em meio à doença

TEXTO Michelle de Assumpção

01 de Maio de 2016

Naná Vasconcelos criou até seus últimos dias de vida

Naná Vasconcelos criou até seus últimos dias de vida

Foto Helder Ferrer

Por trás de uma pesada máscara de balão de oxigênio, que lhe permitia a respiração naqueles últimos dias, os olhares de Naná buscavam os de Patrícia, sua mulher. Eram de indagações, urgências. Os gestos também auxiliavam na comunicação. Queria papel, saber das visitas que constantemente entravam no apartamento e saíam do setor de internação; não queria ser sedado, queria estar consciente e, mais do que tudo, deixar seus últimos registros. Ele sabia que restava pouco tempo, mesmo que não pensasse nisso; tinha pressa. Dali a instantes, receberia duas visitas que seriam essenciais às suas criações musicais derradeiras. O maestro Gil Jardim e o músico Egberto Gismonti foram testemunhas de que a música, para Naná, estava além de qualquer restrição.

O maestro Gil Jardim conheceu Naná em 1994, no Festival Heineken Concerts, em São Paulo. O percussionista e Egberto Gismonti eram os anfitriões do palco, que recebeu convidados como Don Cherry, Bob Stewart e Vernon Reid. Don Cherry, entre fins dos anos 1970 e início dos 1980, foi um dos integrantes, junto a Naná e o citarista Colin Walcott, do grupo Codona, cujos discos foram lançados pelo selo ECM. Codona é uma junção das sílabas iniciais nomes dos seus integrantes e o grupo foi um dos expoentes do que se convencionou chamar de world jazz.

À frente da Orquestra Jazz Sinfônica do Estado de São Paulo, Gil Jardim e demais convidados seguiram para o Rio de Janeiro, no dia seguinte ao Festival Heineken, para a edição carioca do evento. Naná, que havia assistido a Gil em São Paulo, convidou-o para um café da manhã. Ali, nascia uma amizade que marcaria profundamente a vida dos dois e geraria os concertos Berimbau e orquestra, Noite das estrelas, Again-again, Cortina e Goreé. Além do projeto ABC Musical, que foi apresentado em diversos formatos, no Brasil e em outros países.


Fotografias do músico em vários momentos de sua vida. Ao centro, retrato da mãe.
Foto: Hélia Scheppa

No domingo, 6 de março deste ano, Gil Jardim chegou apressado ao quarto de Naná Vasconcelos. O percussionista pediu que acendessem a luz, para ver se era mesmo ele. Depois, que trouxessem papéis e o seu gravador, para que Gil ouvisse e transcrevesse o que ele já havia gravado. Na tarde da segunda-feira, trabalharam por mais de duas horas. Primeiro, na música Tentações de São Sebastião, que compuseram para um filme, tempos atrás. Estava no iphone do maestro. “Ele escutou atentamente os oito minutos de música que eu havia desenvolvido e gravado em MIDI. São lindos. Sempre pensamos que a melodia deveria ter a voz de Milton. Como sempre, imediatamente, Naná entrou numa frequência que bem conhecíamos: música, música, música, um espaço-tempo que junta passado, presente e futuro. Nós nos conectamos dali pra frente nessa sintonia.”

Durante esse encontro, Naná pediu que o maestro ouvisse o track 10 do seu gravador. E Gil ouviu o que ele havia criado: “Amém, amem!” Um mantra surgido espontaneamente, a partir da fala de um vídeo de agradecimento que Naná gravou e publicou em sua página do Facebook, após sair do hospital, em sua primeira internação depois da descoberta da doença em agosto de 2015. “Logo identifiquei uma grande frase que estabelecia uma parte A e uma progressão melódica que seria o material da parte B. Escrevi rapidamente. Nesse processo, fui cantando para ele diversas vezes e ele me corrigindo sempre na mesma nota. A exemplo de como trabalhamos outras vezes, estruturamos a forma da composição, sua arquitetura, variações, interlúdios, reexposições etc. A obra é sacra, para vozes, orquestra de cordas e tambores, com duração entre oito e 10 minutos”, descreve Gil.

Quem estava no quarto e testemunhou o processo criativo conta que levará na memória a cena em que Naná, ofegante e quase já sem respiração, passou a batucar numa garrafinha de vidro a condução da percussão da música. Depois, trocou a garrafinha pelas grades da cama do hospital e tentou comunicar a sua linha ao maestro. Os dedos ainda eram ágeis e certeiros. “Sim, sim, Naná, estou entendendo.” Missão cumprida.

Com Egberto, que chegou na terça-feira, 8 de março, a produção não frutificou. Naná estava mais fraco, além disso, não conseguiu achar, em seu gravador, a melodia da música Um budista afro-budista. Ficou a encomenda e deve ser Egberto quem terminará a música para o álbum, que trará as gravações inéditas deixadas por Naná.

NA AMÉRICA LATINA
Em junho de 2015, Naná saiu em turnê pela América Latina. Realizou shows solo com suas percussões em Buenos Aires, Montevidéu e Santiago. De Santiago, havia saído surpreso e feliz ao saber que, em frente ao teatro onde realizava o show, ambulantes vendiam camisetas e canecas com seu nome e suas fotografias.

Na Argentina, a repercussão por sua passagem continuou. Naná foi capa de diversos periódicos e participou até mesmo de um programa esportivo. Uma manchete em particular chamou-lhe a atenção: “El budista afro de la percusión”, estampou o jornal La Nacion, que comparou Naná, “com seu berimbau parecendo um martelo de Thor”, às figuras do artista surrealista Mati Klarwein, cujas pinturas ilustraram capas de LPs nos anos 1970.


Na casa do músico, no Rosarinho, acervo que só é manipulado, agora, pelo roadie Edelvan Guimarães. Foto: Hélia Scheppa

Naná Vasconcelos, que não cansou de repetir “eu sou o Brasil que o Brasil não conhece”, contou ao jornalista argentino Jorge Luis Fernandez que havia duas músicas no Brasil: “a música popular e outra, pra pular”. E que, mesmo sendo brasileiro, o que apresentava (em seus shows solo) não era necessariamente música brasileira. Era isso que mostraria lá na Argentina. Sua música, disse, não cabia em nenhum desses dois lugares. Naná gostava do olhar do estrangeiro sobre o que criava. Achava que, no Brasil, não se fazia ideia do que ele representava lá fora. Por isso, inspirou-se no título da matéria para compor mais uma música: Um budista afro-budista. A gravação, caseira, aconteceu num momento posterior, quando o câncer chegava mais ameaçador e Naná, que nunca havia expressado identidade por nenhuma religião (ele gostava de meditação), acatou a sugestão de um amigo músico de ir buscar tratamento com o médium João de Deus, em Goiás.

Desse retiro, Naná voltou esperançoso, energizado e pronto para mais um Carnaval. Agora era a vez de ser o Naná brasileiro que o mundo não conhecia. Foi o 15º ano conduzindo mais de 700 batuqueiros pelas ruas do Recife Antigo, até chegar à sua principal praça cívica, o Marco Zero, tomado por milhares de foliões. Da primeira vez em que foi convidado para conduzir o Carnaval, à frente dos maracatus e seus respectivos mestres, Naná assustou-se e achou que poderia não dar certo. Deu certo, mas não existiu um ano em que não tivesse que resolver problemas. Fossem gerados pelas disputas comuns entre as diversas nações de maracatu – sobretudo as mais antigas e famosas –, fosse pela rivalidade de artistas de outros gêneros que queriam espaço também na grande vitrine que é a abertura oficial da folia momesca no Recife.

Nesses 15 anos de ritual carnavalesco, conduzindo mestres e nações maracatuzeiras, Naná deixou poucos registros sonoros e audiovisuais dessas experiências, do que produziu com os dois grupos que criou e que o acompanhavam não só no Carnaval, mas em outras apresentações no Brasil: Voz Nagô e Batukafro. Com relação a esta memória, um documentário está sendo produzido e a ideia do projeto é resgatar a história de Naná no Brasil. Deverá trazer também imagens de atividades dele em outros países, como na França, onde, pela primeira vez, teve a experiência de trabalhar com música para crianças. Naná, que chegou a discutir o formato do filme, queria finalizar as gravações num estúdio em Nova York, com artistas de todo o mundo que foram importantes para sua carreira.

A ideia do documentário é também prestar um serviço de coleta de acervo espalhado ao redor do mundo e que Patrícia Vasconcelos, a viúva do músico, pretende recolher para, no futuro, transformar num memorial virtual de sua obra. Sua preocupação é conter o que diz ser uma ânsia de pessoas que querem fazer projetos usando o nome de Naná, mas que não têm, em sua opinião, verdadeira relação com a obra ou mesmo o pensamento do músico.

Na casa em que viviam, no Bairro do Rosarinho, zona norte do Recife, Patrícia é agora guardiã de um acervo com ares de sagrado. Nem mesmo ela podia tocar nos instrumentos do marido, sempre manipulados por ele próprio ou por seu roldie e amigo Edelvan Guimarães, que os arrumou cuidadosamente para as fotografias exclusivas que ilustram esta reportagem. Os instrumentos que Naná levava para o palco, junto aos que eram mais usados em gravação, estão, em boa parte, no estúdio caseiro do músico. Mas Patrícia acredita que existem outras dezenas deles espalhados por estúdios de São Paulo, Itália e Nova York. Começa, para ela, um trabalhoso e necessário processo de levantamento e coleta de acervo, inclusive musical.

MÚSICA DOS TROVÕES
A produtora japonesa Mari Kimura quis ver de perto a força de Naná em seu próprio país, quando chegou à sua casa no final de 2015 para lhe entregar tsurus feitos por fãs do músico no Japão. Tsurus são origamis de um pássaro que, segundo a lenda, pode viver até mil anos. No Japão, o objeto é sinônimo de desejo por boa saúde e recuperação. Mari entregou os tsurus a Naná e teve a chance de ouvir histórias de outros percussionistas recifenses a respeito dele e da relação de sua obra com a música percussiva do estado, a música dos trovões, dos batuques, de reis e rainhas remanescentes das nações africanas dos maracatus.

Durante a visita, Naná surpreendeu Mari: surgiu na sala tocando magistralmente seu berimbau, numa demonstração de vitalidade, força, ou seja, tinha condições de ir, sim, ao Japão, onde há quase 20 anos não tocava. A produtora, assim que retornou ao seu país, confirmou o convite para que Naná fizesse a turnê na Ásia, acompanhando seu parceiro lendário, Egberto Gismonti. “Naná Vasconcelos é um músico especial, muito amado pelos admiradores da verdadeira música. Fazia tempo que ele não ia ao Japão, mas a paixão que temos por ele no país é muito forte. Ao anunciar o duo de Egberto Gismonti e Naná, tivemos uma reação esmagadora e os bilhetes para a capacidade do Concert Hall, de 1.500 lugares, foram todos rapidamente vendidos”, relata Mari.


Patrícia Vasconcelos, viúva de Naná, tem se dedicado a organizar o legado do percussionista. Foto: Hélia Scheppa

A vontade de Naná e dos fãs japoneses – e asiáticos – não pôde ser satisfeita. O concerto previsto transformou-se numa homenagem, intitulada Egberto Gismonti solo – Remembrance of Naná Vasconcelos. Os shows aconteceram em abril deste ano, nos dias 16, 20 e 22, na China (Xangai), Japão (Tóquio) e Coreia do Sul (Seul), respectivamente. Egberto reproduziu músicas de Dança das cabeças e levou instrumentos como as kalimbas, que, em sua opinião, expressavam o conceito de Naná de fazer percussão. Também foram exibidos vídeos e fotos do pernambucano, inclusive com os batuqueiros no Carnaval do Recife. “Acreditamos que o espírito dele esteve conosco”, comentou Mari.

RESPIRE FUNDO
Na primeira internação de Naná, houve um médico que, diariamente, fazia-lhe a ausculta. “Respire fundo” era a frase que, aos poucos, tirava a paciência do músico. Por algum motivo banal, simplesmente, não tolerava os exames rotineiros e a mesma ordem de sempre. “Respire fundo.” Para resolver a intolerância à situação, transformou a ordem médica em poesia instrumental. Naná foi procurado pela bailarina Paula Vital, do Balé Dança Vida, de Ribeirão Preto, para que compusesse a trilha de um espetáculo que abordaria o caos da cidade.

Naná contou que já tinha um tema e Paula lhe enviou uma primeira parte da coreografia. O músico começou a montagem da trilha, mas não teve tempo de acabar. Dos 20 minutos de trabalho gravado, sairá mais uma faixa para o CD póstumo: Respire fundo e diga trinta e três. O álbum deverá ter entre seis e sete músicas. São criações dos períodos do internamento do músico, entre agosto de 2015 até o seu falecimento. Um disco, segundo Patrícia, “sacro”, mais ligado às experiências de vida e à consciência cósmica, de suas leituras cada vez mais constantes do livro que há 30 anos manteve na cabeceira e nas malas: Autobiografia de um iogue, do guru indiano Paramahansa Yogananda.

No último dia em vida, Naná recebeu amigos, despediu-se de um dos mais constantes e importantes da sua vida, Egberto Gismonti, da sua filha Luz Morena, de Patrícia, de Gil, entre outros queridos que estiveram com ele em sua caminhada até o instante final. Ficou desperto até onde pôde. Decidiu o momento em que seria sedado: nove horas da noite, mostrou com os dedos. Assim foi feito. Às 7h40 do dia seguinte, 9 de março, Naná perdeu os últimos sinais vitais. Partiu.

Ele, que tinha pressa em definir o álbum, chegou a dizer que queria um disco parecido com o que produziu com Itamar Assumpção, Isso vai dar repercussão, que teve apenas sete faixas. Gil Jardim conta que, junto a Patrícia Vasconcelos, encontrará o melhor momento para produzir musicalmente esse material e dividir os sons com todos. Com calma, diz ele, Naná estará presente em cada nota. 

MICHELLE DE ASSUMPÇÃO, jornalista da área de artes e cultura.

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