Arquivo

Os Ibejis

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

01 de Fevereiro de 2016

Ilustração Marisa Luisa Falcão

Vi mesmo ou apenas sonhei? Lembro de ter encostado o flabelo em forma de máscara, numa das paredes altas da casa, o telhado a perder de vista. Sentia-me exausto após percorrer ruas e becos à frente do bloco, carregando o abre alas que eu mesmo havia criado. Na época, não conhecia a mulher que franqueava suas portas ao Bloco da Saudade, ofertando mesa de frutas tropicais, água, refrescos, mungunzá, cocadas e bolos. Tudo de que os brincantes mais precisavam para recompor as forças gastas no desfile pelos bairros do Recife, Santo Antonio e São José.

– Essa é Badia – me falaram, quando ela passou com uma bandeja.

– Ah! – exclamei.

– Maria de Lourdes da Silva.

Olhei curioso a negra num vestido estampado, recebendo os desconhecidos com a nobreza de uma grande dama. A casa velha ameaçava ruir, soterrando seu bocado de história. Construída no Pátio do Terço, onde mais se concentrara a população afrodescendente até a metade do século vinte, continuava um ponto de referência para a cultura nagô e para todas as festas celebradas no Recife. Havíamos entrado pelos fundos, numa espécie de pátio coberto ou terreiro. Imaginei que ali dentro se celebravam os orixás e, um pouco mais adiante, na Igreja de Nossa Senhora do Terço, os santos do catolicismo.

– Posso entrar na casa? – perguntei ao diretor do bloco.

– Acho melhor, não.

Se ele tivesse insistido para que eu entrasse, desvelando portas, cômodos e os mistérios que eu imaginava existirem lá dentro, em meio às relíquias de uma África salva do cativeiro, talvez eu me contivesse entre fatias de abacaxi e bananas, risadas bêbadas e acordes arrancados de bandolins e violões. Mas, a proibição me aguçava os sentidos, me empurrando à procura de experiências novas.

– Essa era a casa das tias Sinhá e Yayá, aonde Badia chegou recém-nascida, em 1915, trazida pelas duas pretas.

Cochichou em meu ouvido o diretor, que arranjara a recepção a troco de nada.

– Sei – disse balançando a cabeça em sinal afirmativo, com vergonha de confessar minha ignorância sobre a história da cidade.

– Das mãos de Badia saem fantasias para os blocos, clubes, escolas de samba e troças do Recife. Ela tornou-se a grande dama do carnaval, uma rainha comandando os festejos.

Pedi licença para me servir, rodeei a mesa e, sorrateiro, invadi o espaço sagrado da casa.

Vi mesmo ou foi impressão?

Havia um corredor comprido, com estandartes e retratos emoldurados nas paredes, cadeiras capengas, portas e janelas semicerradas, interditando os olhares curiosos. Empurrei uma banda de janela e descobri dois meninos, um branco e um negro, deitados. Aparentavam nove meses. Gordos e risonhos, se debatiam na cama, em meio aos lençóis. Achei que fossem gêmeos, apesar das cores diferentes de suas peles. Fiquei um tempo contemplando a aparição. Quem largara dois bebês desprotegidos, ao léu da casa velha? Eles pareciam tão brincalhões e travessos, e tinham pregado uma bela peça no folião bisbilhoteiro. Envergonhado, botei para rir e saí de mansinho. Desejava esquecer o assombro. Não havia álcool em minha pneuma, nada que me condenasse num teste de bafômetro ou fizesse imaginar que eu tivera uma alucinação.

Emburaquei casa adentro. Filtrados pelas paredes grossas, sons de marcha anunciavam que o bloco estava de partida. Pensei em retornar ao pátio, mas fora contaminado pelo desejo de vasculhar estranhezas. Mais estandartes e retratos antigos, precariamente iluminados por lâmpadas incandescentes, de poucos watts. Escutei vozes sussurradas e risinhos. Caminhei na direção de uma saleta e vi três mulheres em volta de uma mesinha redonda e de uma garrafa de cachaça. Bebiam em pequenos copos. Negras e velhas, elas vestiam blusas e saias longas, semelhando os trajes das mães de santo.

Olharam para mim sem surpresa.

– Quer? – me ofereceram a bebida.

– Obrigado, mas não bebo cachaça.

As três riram do meu acanhamento. Uma delas comentou:

– Você não sabe o que perde.

Sei que perco nuances de um Recife de belezas e armadilhas. Ao invés de abrir-me ao vento das marés e dos morros, fecho-me a maior parte do tempo, dentro de carro blindado.

– Quem são os dois meninos na cama? – perguntei.

– Ah! Os meninos.

– O senhor viu?

– Vi.

Elas gargalharam alto e entornaram a bebida goela abaixo.

– Se o senhor viu é porque nem tudo está perdido.

E beberam mais cachaça, muitas talagadas mais, rindo descaradas do meu rosto surpreso, sem alcance para a felicidade que elas sentiam. 

RONALDO CORREIA DE BRITO, escritor.

Publicidade

veja também

A poesia além do gênero

Amor lésbico em debate no cinema

Permanência da Arte