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Augusta Ferraz: Uma estrela que atravessa gerações

Veterana atriz pernambucana, que atuou no elenco de peças originais, contemporâneas e clássicas, prepara-se para estrear no cinema, em filme sobre a ditadura militar

TEXTO Clarissa Macau

01 de Fevereiro de 2016

Augusta Ferraz

Augusta Ferraz

Foto Bernardo Dantas

"Estar no teatro me tranquiliza", conta Augusta Ferraz, vivendo e sobrevivendo intimamente junto às artes cênicas sem medo das coxias, proscênios ou fundos dos palcos há mais de 40 anos e 70 espetáculos no currículo. “É nesse espaço aonde chego cedo, alimento-me, vivo, faço coisas que podem ser feitas ou não”, revelou isso, há alguns meses, em tom de bom humor, encostada ao palco do Teatro Arraial Ariano Suassuna, no centro do Recife, enquanto pensava junto ao iluminador Jhatyles Miranda como seria a luz de sua nova peça: Stupro – monólogo autobiográfico, escrito pela atriz, dramaturga e feminista italiana Franca Rame (1854 - 2013). Nele, a autora reconta o que sofreu em episódio de violência sexual num caminhão oficial com cinco soldados fascistas, no ano de 1973. Antes de desejar montar a peça, Augusta interpretou o texto através da leitura dramática, com direção de Maria Rita Freire Costa, durante retrospectiva em homenagem à obra da atriz pernambucana no 21º Janeiro de Grandes Espetáculos, em 2015.

A primeira experiência com o monólogo italiano destruiu barreiras entre a artista e o ser humano. “Aquilo me bateu descontroladamente. Deu-me crise de choro. A violência, por mais que a gente queira ser indiferente a ela, sempre nos toca. É dela que nascem as dores e as loucuras. O ator lida com essas questões que acontecem no dia a dia, e que são discutidas nas peças dando e tirando energia. O que protege o ator é a reflexão distanciada. Desde que a técnica possa direcionar, a emoção pode vir. Nos outros dias da leitura, apesar de me sentir abalada, contive a emoção. Meu método é desenvolvido durante 24 horas de estudo teatral e observação do mundo”, reflete a atriz. Na época, ela foi convidada pelo coordenador do 22° Porto Alegre em Cena, Luciano Alabarse, para se apresentar no festival gaúcho de 2015. “A primeira vez em que vi Augusta foi numa releitura do antigo texto de Medeia,de Eurípedes –MEDÉAponto (2007), encenação de Marcondes Lima. Lembro a marca em que a personagem simplesmente atendia o celular. Só uma grande atriz daria nobreza trágica a tal cena. Reconheci uma genuína alma teatral, que vai do drama à comédia com naturalidade ímpar”, diz Luciano.


Augusta Ferraz se caracteriza como carroceira protagonista da peça Guiomar.
Foto: Bernardo Dantas

Augusta, então, resolveu que prepararia para o festival essa versão especial do texto Stupro. “Sessenta por cento das mulheres não denunciam o assédio”, justifica a importância da peça na atualidade. Na sua concepção, o drama não teria referência à política, à ditadura com luzes de interrogatório, nem à violência explícita. “Preciso que seja algo atemporal”, imagina. Mas, a dois meses de viajar com o espetáculo, o seu pai morre. Sentindo-se desprotegida e só, pois sua mãe já havia falecido 14 anos antes, desiste momentaneamente de montar o texto de Rame. A saída seria encenar Guiomar – Filha da mãe (2003), texto de Lourdes Ramalho defendido pela atriz, que canta e interpreta como protagonista de uma carroceira contadora de secretos causos da descoberta do Brasil. O Porto Alegre em Cena aceitou bem a proposta.

Em meio às reviravoltas, Augusta cortou os cabelos, antes longuíssimos, em sua casa, testemunhada por suas estantes cheias de livros, suas paredes com quadros, fotos de família e pelo cachorro poodle, Otelo. “Dormia, acordava e cortava mais um pedaço de cabelo, e assim por diante, como se eu estivesse me livrando de algo”, pensa. Os cabelos se tornaram assumidamente brancos. Augusta, hoje com 58 anos, não teme a velhice. “Eu estou envelhecendo. Não quero esconder isso. Gosto de roupas folgadas nas quais eu não precise interpretar um papel de dondoca, mulherzinha ou de gay e possa falar o que eu quiser”, diz. De cabelos curtos, decide contar sobre memórias escondidas no seu inconsciente há anos, responsáveis por impedir o preparo daquela encenação que falava sobre violência contra a mulher: “Sempre que eu terminava o espetáculo, ficava deprê, vazia. Na nossa vida, a gente sofre contínuos estupros, seja no sentido figurado ou não. Mas tudo fica mais simples quando você compreende. Não que a dor passe”.

UM ATO ILEGAL
Após a morte do pai, Augusta começou a dormir muito. Um acontecimento da sua juventude ressurgiu durante os sonhos. Numa madrugada em 1986 – mesmo ano da gravação de seu premiado vídeo Pharkas Sertanejaz, e da criação do seu grupo teatral homônimo existente até hoje, composto por ela e colaboradores convidados – Augusta, na época estudante de música na Universidade Federal de Pernambuco, e mais cinco amigos voltavam de carro da mata sul ao Recife depois de alguns dias de descanso. Na Ponte Santa Isabel, no centro da cidade, uma inesperada blitz da polícia militar espreitava a rua com caminhão, cachorros e mais de 100 soldados empunhando metralhadoras. Deviam estar à espera de algo grandioso. Tudo estaria tranquilo, se não houvesse fumantes de maconha atrás do carro. “Mandei jogar fora. No meio da ponte, pararam a gente, ainda tive de arrancar o baseado da boca de uma pessoa”, conta. Os policiais abriram as portas do carro. Repentinamente, Augusta se assustou quando viu uma latinha de pastilhas

embaixo do banco. Eram restos de bagas de maconha guardados. “Jogaram-nos num ônibus com várias pessoas sentadas no chão. Eram bêbados, ladrões, miseráveis”, relata. O soldado, sem dó, empurrava os jovens ao mesmo tempo em que caminhava sobre os presos. Todos foram levados à delegacia. Os policiais não paravam de lhes perguntar “Quem é a diretora do Circo Voador?”, que se encontrava na cidade naqueles dias. Os colegas, três rapazes e três moças, foram presos obrigatoriamente nus em celas sujas de fezes, urinas e sem luz. Às sete horas da manhã, foram soltos sem maiores explicações do acontecimento claramente ilegal. “Que vergonha prender seis estudantes por causa de uma lata de pastilhas. Esses homens poderiam fazer o que quisessem e sumir com a gente. O estado de fragilidade diante dos policiais é muito grande. Sabemos que não mudaram muito da ditadura militar para cá. O Brasil é um dos países que mais torturam pessoas na polícia, segundo a ONU. Principalmente os pobres, cães sem dono”, desabafa Augusta.


Augusta, ainda na personagem. Foto: Bernardo Dantas

Após a memória dolorida, porém libertadora, Augusta se sentiu tranquila para voltar a ensaiar Stupro no mês passado. Além disso, em novembro de 2015, foi convidada pela cineasta pernambucana Tuca Siqueira para participar do elenco da ficção Amores de chumbo, com previsão de lançamento para o segundo semestre de 2016. Coincidentemente, o filme remete aos tempos opressores da ditadura militar brasileira de maneira subjetiva, sem a violência explícita que Augusta tanto deseja evitar em suas montagens teatrais, e nem mesmo gosta de assisti-las como expostas no cinema. “A estética do cinema brasileiro, hoje, muitas vezes lembra o neorrealismo europeu de anos atrás. A diferença é que a miséria não era tão latente e existia metáfora, como a gente vê em Stromboli (1950), de Rosselini. Não mostra a faca cortando e o sangue espirrando na cara do espectador, feito os filmes atuais. Para que isso serve? É para dizer que nós somos uma raça hedionda? Mas a gente já sabe disso. Acho que a arte anda na frente da sociedade. Artes são saídas”, arremata.

A história de Amores de chumbo acontece em torno de um triângulo amoroso de ex-militantes políticos, quando desconfianças sobre o passado são trazidas à realidade. Augusta fará Lúcia, esposa de Miguel, interpretado pelo ator cearense Aderbal Freire Filho. Os dois reencontram, 40 anos depois da ditadura, a escritora Maria Eugênia, defendida pela atriz carioca Luciana Carneiro. “Mesmo que tudo aconteça por causa de uma mentira que a minha personagem solta e muda tudo no enredo, tudo é muito afetivo. Nós, os três atores do elenco, temos histórias parecidas. São pessoas conhecidas, mas que não viraram celebridades, trabalhando de uma maneira que visa à arte e não ao produto”, conta Augusta.

O primeiro longa-metragem de ficção da documentarista Tuca Siqueira, autora de filmes bem-sucedidos, como Garotas da moda (2003) e Mesa vermelha (2013), é também o primeiro de Augusta. Tuca conta como decidiu convidar a atriz de tradição nos palcos: “Muitas pessoas a indicaram porque, apesar da não experiência no cinema, era uma grande atriz. Ela é disposta a assumir um novo desafio na carreira e a exposição que o personagem exige, inclusive quanto ao corpo. É isso que me atrai em Augusta: a coragem!”. Augusta já estava com vontade de atuar no cinema: “Queria entender mais das nuances de cada mídia. No cinema, há outra postura da voz reduzida, do som mecânico, que não é o da minha voz humana”.

O MITO DO PREGO
Com a sua voz e presença de palco marcante, Augusta construiu uma qualidade sólida no teatro, registrada em vários livros escritos por autores das artes cênicas, como Enéas Alvarez e Valdi Coutinho, respectivamente em Casa de espetáculo (2009) e O palco da memória (2008). Ela trabalhou não só no elenco, mas na produção de peças originais, contemporâneas e clássicas com textos que vão de Eurípedes à August Strindberg; de Carneiro Vilela a Raimundo Carrero, acompanhada de grandes diretores como Moncho Rodriguez, Antonio Cadengue e João Falcão.


No set de filmagem do primeiro longa de ficção de Tica Siqueira, Amores de chumbo.
Foto: Victor Jucá/Divulgação

Também encenou clássicos infantis nos anos 1980 pela companhia Ilusionistas. O diretor do grupo teatral Máquina dos Sonhos, Wellington Júnior, acompanha sua carreira de perto desde que assistiu à peça Malassombro (2001), de Ronaldo Corrêa de Brito, no Teatro do Parque. “Depois, não perdi um espetáculo dela. A partir dos anos 1990, ela vai ser uma das primeiras atrizes da cena teatral a pensar a ideia dos espetáculos solo, em que ela dirige e atua”, diz o diretor. Augusta se autodirigiu, pelo grupo Pharkas Sertanejaz, em monólogos como o próprio Malassombro e Sexo, a arte de ser censurada (2014), obra baseada nos textos de Franca Rame.

A artista também esteve em várias frentes das lutas pela cultura. “Fiz parte de uma pequena gama de pessoas da sociedade que esteve presente fazendo os sindicatos acontecerem, a Federação de Teatro de Pernambuco, as associações de produtoras, o Sistema de Incentivo à Cultura municipal, que a prefeitura nos roubou, e o Funcultura, que deveria acontecer duas vezes por ano e deve anos de verba”, conta a atriz.

COMEÇO
A primeira encenação de sua vida foi uma expressão corporal da peça Jesus Cristo Super Star, de Andrew Lloyd Webber, pelo Colégio Leão XIII, no ano de 1973. “Há o mito que, no dia da estreia, você tem que achar um prego para tudo dar certo. Na minha, no Teatro de Santa Isabel, eu não só achei um prego, como ele varou o meu dedão do pé. Eu sei que, quando Jesus morre, eu sofri como ninguém aquela dor. Entrei no palco empurrada por Clenira Melo. E entendi que o espetáculo não podia parar, hoje eu já sei que pode, sim”, lembra.

Filha de pais separados – a mãe professora universitária e o pai coronel –, viveu toda sua infância com a família materna. A vontade de ser atriz não foi uma decisão pensada: “Quando vi, eu era. Tive uma infância de muita fantasia. Algumas das minhas peças e contos foram montados no quintal da minha avó. Eu adorava encenar A Branca de Neve e filmes de bangue-bangue”. A casa da avó era um sítio no Bairro do Arruda, num Recife de outrora, cheio de árvores e pouco asfalto. “Adoro olhar para a cidade e dizer ‘olha, aqui tinha isso; ali, tinha aquilo’”. Porém, era impossível a cidade com a quantidade de gente que tem hoje continuar a vila de interior que vivi. A mentalidade interiorana continua na questão da moral recifense, apesar de muito metida à moderna”, pensa. Segundo ela, a capital pernambucana parece ter uma tradição incessante pela busca do novo. “O Recife diz que as peças ficam velhas. Como é que algo etéreo pode ficar velho, desvalorizado?”, pergunta-se. Para ela, “as lâmpadas podem queimar, a gelatina entortar, o figurino envelhecer, mas o espetáculo não. Mas, no Recife, se não for novo, está fora de circulação”.


A atriz em Sexo, a arte de ser censurado, peça que coescreveu e dirigiu.
Foto: Alcides Ferraz/Divulgação

A ATRIZ
Ainda assim, Augusta cultiva seu repertório. Quando sobe ao palco com peças como Guiomar, em cartaz há mais de 10 anos, é visível sua aproximação com a atuação naturalista. “O que Freud é para a Psicanálise, Stanislavski, pai do Naturalismo, é para a interpretação”, costuma dizer. Na visão de Wellington Júnior, Augusta é fruto de um período de diretores que investiam no diálogo forte entre intensidade vocal e força corporal – “Ela se impõe em cena com uma corporeidade dilatada”. Mesmo estudando diferentes técnicas ou atravessando montagens com ares surrealistas, ela não gosta de falsear, mas achar o tom perfeito para a encenação atingir seu palco e plateia. “Afinal, estamos falando sobre seres humanos, não de Saturno, Marte ou Vênus. Mas de terráqueos.” Para Augusta, deve-se prezar pelos personagens. “Muitas vezes, quando não é natural, há uma esquisitice na construção da figura. Eu chego a ver o ator descendo para a plateia rindo e expondo o personagem. É muito o teatro de hoje. A não interpretação não existe, a gente interpreta toda hora na vida. O ser humano é máscara por si. Não tiramos muitas máscaras nem para nós mesmos. Tem ator que não quer assumi-la e acaba assumindo muito mais”, acredita.

Em 2005, no Teatro Apolo, Pedro Wagner, hoje ator e diretor do grupo de teatro Magiluth, assistiu cerca de 10 vezes ao espetáculo A vida diva, dirigido por Carlos Bartolomeu. Peça de estrutura formada por colagens textuais, na qual três divas decadentes correm numa tempestade até encontrarem um estúdio. Uma delas é vivida por Augusta. “Ela tinha uma presença notável, até hoje lembro o seu texto, que dizia – ‘plantei tomates, as sementes estavam logo ali na horta daqueles tomates grandes’. Identifico-me com essa força da atriz”, lembra Pedro, que utilizou o trecho no roteiro da última peça do Magiluth, O ano em que sonhamos perigosamente. Augusta vê em grupos como o Magiluth, Cênicas Cia. de Repertório, Poste: Soluções Luminosas e Coletivo Angu exemplos responsáveis por motivar o lado do teatro recifense profissional. “Mas ainda tem muita gente que deveria estudar e aprender a fazer melhor teatro, para não voltar a esvaziá-lo”, comenta, pois constatou que a cidade está num momento bom. “O público voltou a procurar os palcos, diferentemente de uma época quando as bilheterias minguavam ao ponto de dar vontade de puxar os passantes da rua para assistir às peças”, observa.Décadas atrás, o teatro era uma arma de luta, hoje Augusta se vê lutando, como muitos, por esse instrumento em meio à falta de patrocínio e à forte vontade de permanecer atuando. “Minha fama é do tamanho da minha aldeiazinha, Recife. Cidade sem mídia para artista. Aqui, ser ator com toda uma formação e ser um ator que sobe pela primeira vez no palco é a mesma coisa”, reclama. O trabalho de ator parece ainda esbarrar na discriminação à classe. “O artista ainda é tido como um marginal, porque fala o que desperta as mentes e existem pessoas poderosas que não querem isso.” 

CLARISSA MACAU, jornalista e idealizadora da revista Cardamomo.

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