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Umami: O quinto gosto

Esta nova maneira de descrever a sensação gustativa de um alimento conta com respaldo científico, mas ainda é polêmica

TEXTO Renata do Amaral

01 de Novembro de 2015

Imagem Karina Freitas

Doce, salgado, azedo e amargo. Muita gente está tão acostumada aos quatro gostos básicos, que se surpreenderia ao saber que existe um quinto gosto – e, mais ainda, que ele foi descoberto há mais de 100 anos no Japão. Só neste milênio, porém, ele foi reconhecido cientificamente como tal. O umami não é tão óbvio de perceber quanto os outros quatro, mas se caracteriza justamente por harmonizá-los e potencializá-los, além de oferecer maior persistência na boca. Para ele aparecer, o glutamato monossódico precisa estar presente.

O pesquisador Kumiko Ninomiya, da organização sem fins lucrativos Centro de Informações sobre Umami, explica que a palavra umami pode ser traduzida como “saboroso”, ou ainda como “típico de carne ou de caldo”. O gosto foi descoberto em 1908 pelo professor Kikunae Ikeda, da Universidade Imperial de Tóquio, em sopas com a alga marinha da variedade kombu desidratada. Não é exatamente a mesma coisa, mas o gastrônomo francês Brillat-Savarin já falava de um gosto típico de carne no seu livro A fisiologia do gosto, em 1825.

“Apesar de o umami não ser um gosto tão destacado como o doce, o ácido, o salgado e o amargo, esse quinto gosto realça o sabor dos alimentos, tornando-os mais intensos e deixando-os mais apetitosos”, explica Ninomiya. Seu artigo faz parte do livro Umami y glutamato: aspectos químicos, biológicos y tecnológicos, organizado por Felix Guillermo Reyes Reyes, professor titular do Departamento de Ciências dos Alimentos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Em mais de 600 páginas, reúne 20 artigos científicos sobre o tema.

“É difícil de explicar. Quando você come um queijo parmesão, você dá uma mordida e vem aquele extra de sabor. A boca parece que fica com mais saliva. Você sente um sabor a mais que não consegue identificar”, afirma o chef André Saburó, do restaurante japonês Quina do Futuro. No momento desta entrevista, ele estava em Roma para gravar o documentário Pernambuco: sabores do mundo, em que percorre, ao lado dos chefs Joca Pontes e Duca Lapenda, suas influências gastronômicas no Japão, França e Itália.


No tomate fresco é possível sentir o quinto gosto. Foto: Divulgação

Além do queijo curado, ele ressalta o umami do tomate fresco e das algas marinhas. Não é só na cozinha oriental que ele se encontra, mas também em combinações tipicamente ocidentais como as massas italianas. “Ele não é doce nem salgado, fica uma coisa no meio termo, não tem acidez nem é amargo. Você sente realmente um ponto a mais”, explica. O chef diz que, apesar o umami ser um gosto de difícil caracterização, os japoneses costumam defini-lo como uma explosão na boca. “Ele realmente é um outro sentido”, conclui.

O gosto foi confirmado recentemente, mas há muito já era usado na cozinha na forma de molhos de peixe fermentado e extratos concentrados de carnes e vegetais, por exemplo. No mesmo livro citado acima, os professores Carlos Silvera, da Universidade Católica do Uruguai, e Rosa Alejandra Longa López, da Universidade Peruana de Ciências Aplicadas, buscam refazer o percurso do umami na história da gastronomia. Na Roma Antiga, havia ogarum, molho feito com peixe salgado e fermentado ao sol.

“O sabor umami está estreitamente relacionado aos mais importantes molhos e condimentos que, enraizados nas entranhas das mais antigas civilizações, navegaram pela cultura alimentar, alimentando a carne e o intelecto da humanidade”, explicam os autores. Condimentos e pratos como molho inglês, ketchup e sopa de peixe com parmesão ralado em cima são alguns exemplos. Ninomiya defende que o uso de anchovas como tempero em pratos italianos até hoje – a sardela é um exemplo – remete ao garum.


O quinto gosto também está presente na alga marinha. Foto: Divulgação

CARNE E TOMATE
umami foi reconhecido como gosto apenas no ano 2000, quando o professor Charles Zuker, da Universidade da Califórnia, publicou um artigo na revista Nature Neuroscience demonstrando que a língua possui um receptor gustativo específico para o glutamato, que está presente naturalmente em carnes, peixes, vegetais e lácteos. No livro Comida e cozinha: Ciência e cultura da culinária, Harold McGee explica que o umami está mais presente em alimentos do reino animal, ricos em proteínas, mas também se encontra em vegetais.

“O ácido glutâmico do tomate, aliado a seu equilíbrio entre doçura e acidez, pode ajudar a explicar por que esse fruto é usado com tanto sucesso como uma hortaliça, acompanhado ou não de carnes”, esclarece. “Os aromas de ácido glutâmico e enxofre são mais comuns nas carnes do que nas frutas, daí a predisposição do tomate de complementar o sabor de carne ou mesmo substituí-lo, e, sem dúvida, de acrescentar complexidade e profundidade a molhos e outros preparados mistos.” Quando bem maduros, eles são mais ricos em umami.

A sensação de água na boca é a sempre lembrada quando se fala no quinto gosto, também encontrado em moluscos e crustáceos. “Para equilibrar a salinidade da água do mar, a maioria das criaturas marinhas tem as células preenchidas de aminoácidos e de suas parentes, as aminas. O aminoácido glicina é doce; o ácido glutâmico, na forma de glutamato monossódico, é sápido e dá água na boca. Moluscos e crustáceos são especialmente ricos nesses e em outros aminoácidos gostosos”, diz McGee.

É claro que, quando o umami foi descoberto, a indústria de alimentos foi em busca de criar sua versão do glutamato. O professor Reyes Reyes explica que ele é obtido pela fermentação da cana, milho e mandioca. Como aditivo alimentar, é seguro se usado em pequenas quantidades, segundo a Food and Drug Administration (FDA), órgão responsável pelo controle dos alimentos nos Estados Unidos. O autor afirma que hoje ele é o aditivo mais usado no mundo e tem função de potencializar o sabor.


Umami pode ser encontrado, ainda, no queijo parmesão. Foto: Divulgação

Por outro lado, o excesso de uso do pó branco que promete essa mágica pode causar a síndrome do restaurante chinês, que inclui desidratação e dor de cabeça. E, como era de se esperar, ele não substitui as sensações ocasionadas pelo glutamato, quando encontrado naturalmente nos alimentos, conforme defende McGee: “O aspecto mais deplorável da saga do glutamato monossódico é o modo pelo qual ele foi usado como um substituto barato e unidimensional de alimentos verdadeiramente extraordinários”.

SENSAÇÕES
É importante fazer uma distinção: gosto e sabor não são a mesma coisa. A professora Maria Aparecida Pereira da Silva, da Universidade Federal de Sergipe, no livro organizado por Reyes Reyes, diz que o sabor é a soma de três elementos: os cinco gostos básicos gerados por estímulos sensoriais na boca, as sensações odoríferas causadas por compostos voláteis liberados pelo alimento durante a mastigação e as percepções – como adstringência, ardor e temperatura – obtidas pela estimulação do nervo trigêmeo, localizado na boca e no nariz.

O sentido do gosto vai além do prazer: tem funções importantes na sobrevivência humana, como evitar a ingestão de substâncias tóxicas e avaliar o valor nutricional dos alimentos. Doces, por exemplo, são fonte de energia e há uma predileção inata por alimentos adocicados. O antigo mapa da língua impresso nos livros de biologia, porém, com locais específicos para cada gosto, está superado. “Todos os cinco gostos básicos podem ser percebidos em todas as regiões da língua que possuem botões gustativos”, explica.

Ao falar, no mesmo livro, sobre os aspectos sensoriais do umami, a professora Elba Sangronis, da Universidade Simón Bolívar, ensina como identificar um gosto básico: “Deve ser claramente diferenciado de outros que já se conhecem, a qualidade desse gosto deve ser universal em todos os alimentos e deve ser verificável pela neurofisiologia como um gosto diferente dos já existentes”. No caso do gosto umami, ele é mais forte quando há o encontro entre o glutamato e outras duas substâncias: o guanilato dissódico e o inosilato dissódico.


O chef Heston Blumenthal prepara um 'caldo umami' para quem deseja
sentir o quinto sabor. Foto: Divulgação

A presença do glutamato nos alimentos é o foco do texto de três pesquisadores da Unicamp: Jaime Amaya-Farfan, Priscila Neder Morato e Marina Vieira da Silva. “Os alimentos que se destacam pela elevada concentração de glutamato livre naturalmente presente são, justamente, aqueles usados na culinária em virtude de sua capacidade de conferir atributos sensoriais de sabor a pratos e preparações”, afirmam. Por isso mesmo, são ingredientes muitas vezes usados em molhos, tais como o tomate, o queijo e o cogumelo.

Os autores citam uma pesquisa que mostra o conteúdo de glutamato livre (em miligramas a cada 100 gramas): o queijo parmesão tem 1.680; a alga marinha kombu tem 1.608; o molho japonês de peixe, 1.323; o molho shoyo japonês, 782; o tomate tem 246, o leite materno, 19 e o leite de vaca, 1. É curioso perceber como o leite materno tem muito mais glutamato livre do que o leite de vaca, o que pode motivar uma predileção inconsciente pelo gostoumami ao longo da vida.

ÁCIDO GLUTÂMICO
Processos naturais de maturação, secagem, cura, envelhecimento e fermentação aumentam o gosto umami dos alimentos ao liberar seu ácido glutâmico. É o que explica a professora Silvia Mendoza, da Universidade do Chile, na coletânea de artigos. Isso acontece em embutidos como o choriço espanhol e opepperoni italiano. O tomate maduro tem 10 vezes mais glutamato que o verde, assim como o shiitake seco tem 1.060mg a cada 100g, contra 71 do produto fresco. Ou seja, é possível potencializar o gosto sem recorrer a aditivos industrializados.

Claro que tamanha descoberta não passaria batida pelos chefs mais renomados. É o caso de Heston Blumenthal, do restaurante The Fat Duck, na Inglaterra, com três estrelas no Guia Michelin. Para ele, o umami não é uma exclusividade oriental, pois está em diversos ingredientes que os ocidentais usam no dia a dia, como o tomate. No livro Umami: the fifth taste, lançado em 2014, o chef explica que prepara um “caldo umami” para quem deseja sentir o quinto sabor. Leva alga kombu, molho de soja, cogumelo shiitake seco, peixe cavalinha e tomate.


Depois do seu reconhecimento como gosto, o umami passou a ser tema de estudos.
Foto: Reprodução

Da geração de chefs ligados tanto à cozinha quanto ao laboratório, ele participa de pesquisas sobre gosto realizadas na Universidade de Reading. Em artigo publicado no jornal The Guardian, em 2002, Blumenthal afirma que o caldo dashi é usado no Japão para adicionar complexidade às preparações – enquanto essa função é cumprida por gorduras, como manteiga e creme, no Ocidente. O caldo dashi leva algas secas e raspas de peixe curado. Cogumelo desidratado é um item opcional. Mais cheio de umami, impossível.

“O dashi, feito no Japão há mais de mil anos, é um exemplo clássico de como, recorrendo a nada além de tentativa e erro, uma cultura tradicional pode aperfeiçoar um processo químico culinário, que só conquistaria reconhecimento muito tempo depois”, afirma o jornalista e escritor Michael Pollan, no livro Cozinhar: Uma história natural da transformação. A alga kombu desidratada é coberta por uma camada de cristais brancos repletos de glutamato, ou seja, contém umami em estado bruto.

Pollan explica que o gosto é inato, mas que o sabor depende da experiência pessoal. Ele cita o exemplo do “tofu fedido” que experimentou na China, considerado agradável naquela cultura, mas asqueroso em outras. O umami, curiosamente, é um gosto sem gosto identificável, cuja função é justamente destacar os outros gostos. “Um pouco como o sal, o glutamato parece destacar o gosto dos alimentos; porém, ao contrário do sal, ele não tem um gosto próprio reconhecível”, escreve Pollan.

A despeito de ser algo intangível, o umami atualmente é dado como certo. “Hoje existe uma compreensão do umami no campo da neurociência e da fisiologia do sabor”, diz a professora Silvia Mendoza, da Universidade do Chile. E Pollan mata a charada sobre a importância do quinto gosto: “Será mera coincidência que tantas das coisas que consideramos comidas afetivas – do sorvete à canja – transitem entre o doce e o umami, os dois primeiros gostos que conhecemos ainda no peito da mãe?” 

RENATA DO AMARAL, jornalista, professora, doutora em Comunicação e autora de Gastronomia: prato do dia do jornalismo cultural.

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