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HQS: identidades movediças

'Talco de vidro', de Quintanilha, e 'Lavagem', de Shiko, lançadas quase simultaneamente, são obras desafiadoras que comprovam a vitalidade do quadrinho nacional

TEXTO Germano Rabello

01 de Outubro de 2015

Narrativa de 'Talco de vidro

Narrativa de 'Talco de vidro" se dá a partir de lembranças

Imagem Reprodução

Marcello Quintanilha e Shiko estão entre os mais prestigiados nomes do quadrinho nacional. Existe em ambos uma grande dedicação à técnica, visível no traço, na transformação fiel e bem-planejada do discurso em linguagem. Em meio a grandes diferenças, o lançamento quase simultâneo de seus trabalhos mais recentes faz perceber a complementaridade de suas visões sobre o ser humano. Talco de vidro, de Quintanilha, e Lavagem, de Shiko, estão ligados por uma persistente lembrança de coisas que ameaçam nos devorar vivos: o mundo lá fora, o ego aqui dentro. São ruídos de fundo cuja intensidade aumenta de forma sub-reptícia e constante.

Os lançamentos são boas notícias em si e, além disso, sinais da vitalidade do mercado editorial brasileiro. A produção de quadrinhos não para, seja pelas grandes editoras, seja por editoras menores, sejam fanzines ou álbuns de luxo. Lavagem eTalco de vidro são publicações em capa dura, com produção muito além da média. As editoras, Mino e Veneta, respectivamente, apareceram no mercado há pouco tempo e já apresentam no currículo alguns lançamentos bem-selecionados, conquistando espaços através da inteligência. A Veneta foi premiada com o Troféu HQMix de melhor editora e, por ela, Marcello Quintanilha recebeu o prêmio de melhor roteirista nacional, pelo álbum anterior, Tungstênio. A livraria é hoje a principal vitrine do quadrinho nacional, ao menos em se falando de edições físicas, ou seja, descontando a internet.

Quintanilha, nascido em 1971 na mesma Niterói que é o ambiente da sua graphic novel, é desses que pegaram o bonde do quadrinho nacional em fase de transição, nos anos 1990. Mas ele foi comendo pelas beiradas e fazendo seu nome em salões de quadrinhos, e em revistas variadas (todas de duração curta). Mas um dos seus maiores entusiastas foi sempre Rogério de Campos que, nas editoras Conrad e Veneta, publicou a quase totalidade das obras dele, começando por A fealdade de Fabiano Gorila (1999), passando por Sábado dos meus amores (2009) e Almas públicas (2011).

Como se não bastasse a precisão do seu traço, seu roteiro e seu texto estão entre os mais elaborados do quadrinho nacional. Em Talco de vidro, a narrativa se desfaz em lembranças, acontecimentos banais, à primeira vista insignificantes. A gente se aproxima da personagem principal, temos acesso à sua intimidade; até aos seus pensamentos – ou como o texto ressalta, às suas sensações. E são essas sensações, vagas, inconscientes, não decifradas, que levam Rosângela a sair dos trilhos de sua vida aparentemente perfeita. Mesmo numa situação confortável de classe média, de êxito profissional, casamento estável, a mente abre espaço para uma crise.


Quintanilha exibe traço preciso, texto e roteiros bem-elaborados. Foto: Divulgação

O sentimento geral é reforçado já do título, a partir da combinação de elementos díspares, entre o que é reconfortante e o que pode perfurar, entre o que é familiar e o que é ameaçador. Não é leitura das mais fáceis, para o público em geral, não tem uma grande trama de mistério nem heróis, são os sentimentos varridos para debaixo do tapete que interessam aqui. Estão expostas a mesquinhez e instabilidade da alma humana. Esse olhar adulto sobre o cotidiano o aproxima de mestres modernos como Daniel Clowes e Eddie Campbell.

“Minha intenção é trabalhar um tipo de mentalidade muito raramente verbalizada em nosso convívio cotidiano, e que é muito familiar a todos nós, tenho certeza, independentemente de nossa origem social”, explica Quintanilha. Mesmo que não tenha sido a intenção do autor, é difícil não ligar esse recalque a uma parcela da classe média brasileira que, de tanto se definir por suas posses e seu status, se defronta com o vazio que existe apesar de tudo isso. E ao momento de polarização política e transformação social que a gente vive.

É uma narrativa fragmentada. A estrutura tem idas e vindas, pensamentos recorrentes e obsessivos, lembranças revividas. Remete à literatura contemporânea, ao cinema. Quintanilha é fã declarado de escritores como Clarice Lispector e Machado de Assis, de diretores como Welles e De Sica. O que ele produz aqui é uma narrativa de pensamentos velados, um fluxo de consciência em terceira pessoa, talvez porque a própria personagem tenha dificuldade de saber muito bem o que sente.

Por ter os diálogos interiores na mesma proporção que as ações factuais, o roteiro impõe vários desafios para a representação gráfica, mas o autor consegue escapar tranquilamente das armadilhas, sem cair no óbvio. A qualidade labiríntica dos pensamentos tem paralelo no leiaute claustrofóbico das páginas, divididas em quadros bem pequenos, e também nos muitos planos de detalhe, nas letras invadindo o espaço de forma irregular. Algo próximo do estilo que ele também apresentou ao adaptar O Ateneu para os quadrinhos.


Multifacetado, o trabalho de Shiko pode ser visto em galerias ou
nas ruas. Foto: Divulgação

Este segue a linha do anterior, Tungstênio, em preto e branco e tons de cinza. A diferença é a decisão de enfatizar os vazios, as manchas de luz e sombra, deixar as formas se estabelecerem sem contorno. Quintanilha define assim: “Tungstênio faz uso de tons de cinza para dar agilidade e crueza ao desenho, enquanto que os tons de cinza de Talco de vidro reforçam sua atmosfera subjetiva, expressionista. O desenho sugere, muito mais do que mostra”. Investe também num recurso injustamente esquecido pelos quadrinistas ocidentais de hoje, as retículas (zip-a-tone), e constrói com elas texturas incríveis. E o habitual detalhismo com o cenário: com ajuda de referências fotográficas, Quintanilha faz dos quadrinhos um retrato bem fiel das ruas brasileiras.

LAVAGEM
As estratégias narrativas e estilísticas em Lavagem, de Shiko, são praticamente inversas. Pouco se sabe sobre a personagem principal, nem ao menos o nome da mulher. A ação assume o primeiro plano, as palavras são esparsas. O contexto é desolador: uma palafita na lama da maré, que tem nos fundos um curral de porcos. Os conflitos são mais tangíveis, têm carne, sangue e ossos.

Shiko é uma figura multifacetada, cuja arte pode estar tanto em galerias como nas ruas – sua versão street art costuma ser assinada como Derby Blue. Nascido em João Pessoa, em 1976, faz cartazes de festa, capas de disco, storyboards, enfim, transita bem à vontade pelo universo pop. Lavagem é a adaptação de um curta dirigido por ele e lançado em 2011. “Acho que a maior diferença foi o tempo que tive para maturar os problemas e as questões que o roteiro apresentava. Nesse sentido, o roteiro do quadrinho tem mais capricho, é mais bem-lapidado”, explica.

A trama envolve um casal da beira do mangue, seu cotidiano enfadonho, ele cuidando dos porcos, ela cuidando da casa e indo à igreja evangélica. A súbita aparição de um pastor evangélico é o evento que desencadeia o resto. É um contexto de opressão avassaladora, pobreza, misoginia, conservadorismo. Todos os terrores são da vida real – incluindo aí uma televisão ocupada por pregações religiosas paranoicas.


Lavagem é uma adaptação do curta dirigido pelo autor em 2011.
Foto: Divulgação

Sobre isso, Shiko declara: “Em nenhum momento faço uma crítica a esse discurso, ou descontextualizo de modo a criar um discurso crítico a ele. Tampouco o favoreço. Mas o leitor que é contra esse tipo de pregação será crítico ao personagem, o leitor que compactua com esse discurso será simpático, sem precisar de minha ajuda para isso. Também não é de graça que a mulher não tenha nome. Em casa e na igreja ela não é tratada como indivíduo, ela é generalizada como ‘mulher’. Acho que esse é um bom exemplo de como uma informação que falta, às vezes, diz mais do que a informação completa”.

A HQ tem também crueza no traço. Cheia de hachuras, traços grossos, um visual “sujo”. Isso é equilibrado pela fluência de Shiko em tornar expressivos os personagens e os cenários. Proporções realistas, acentuando alguns detalhes do marido em especial.

As páginas fluem de maneira mais aberta, menos quadros por página, menos palavras. Elas comunicam muito, imediatamente, ao primeiro olhar. Há páginas regulares, compostas de tiras horizontais, como uma tela em Cinemascope, e outras em que essa lógica é quebrada completamente; páginas são compostas como uma ilustração única, sem limites entre os momentos. O impacto é construído como nos melhores filmes de terror, nós sabemos que vai acontecer algo, e que pode até em alguma medida ser previsível, mas não sabemos de onde vem o golpe. E quando tentamos racionalizar, já é tarde demais, estamos dentro da história, já trocando de pele com os personagens, no lugar deles, no ambiente claustrofóbico.

É uma história de terror, com algo de alucinação ou pesadelo. Impactante, tensa, para ler num só fôlego, não apenas pelo número de páginas e escassez de palavras, mas porque sequestra a atenção do leitor e não a devolve até o final. A HQ remete tanto aos clássicos quadrinhos de horror de revistas como Kripta Calafrio, como às modernas revitalizações do gênero através de Thomas Ott e outros artistas.

Seja na paranoia do isolamento ou da busca do status na sociedade, e mesmo com o desconforto que possa causar a alguns,Lavagem e Talco de Vidro são duas obras desafiadoras. Quintanilha e Shiko são dois artistas que devemos acompanhar sempre. 

GERMANO RABELLO, jornalista, especialista em arte sequencial.

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