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O quadro que Chagall não pintou

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

01 de Agosto de 2015

'Over the town' (1918), de Marc Chagall

'Over the town' (1918), de Marc Chagall

Imagem Reprodução

Não me lembro se foi na Granja Sajutá ou se foi na São Saruê, em Carpina. Com o tempo, as certezas tornam-se nebulosas e perdem o significado. Sei que era 1976, porque nesse ano ingressei para a residência médica do Hospital Getúlio Vargas, e se comemorava a noite de São João. Avelina fora convidada por Bernadete Antunes e me levou junto. Arrastei o nosso professor de inglês, um estudante de medicina, que por sua vez levou a namorada. Apenas no Nordeste do Brasil é possível esse abuso de hospitalidade.

No terreiro da granja, uma fogueira acesa, bandeirinhas, jarros com flores, mesas cobertas de panos de chita e muita comida, o que se possa imaginar de bom e melhor. Os manjares, que antes se apreciavam apenas no ciclo junino, nas festas de Santo Antônio, São João e São Pedro. Canjica, pamonha, pé de moleque, bolo de milho, grude, pamonha de forno, milho cozido e assado... quanto exagero! Mas todos na família de Seu Renato e Dona Lourdinha pareciam malucos por comida. Encher a barriga dos convidados e fartá-los até a regurgitação era lei sagrada, a mais alta expressão de nobreza e hospitalidade.

Pairando sobre a neblina e os risos festivos, o barulho de fogos e do trio pé de serra, a sanfona subindo e desafinando na mesma proporção em que o álcool ascendia à cabeça do sanfoneiro. Calado e solitário, no lugar de observador, o camarote de voyeur que procura sentir com os olhos, o lápis e a caderneta sempre ao alcance da mão, eu me divertia ao meu modo.

Tentavam me arrastar para a quadrilha, cheia de dançarinos embriagados, atrapalhando as evoluções. Alguns já buscavam cadeiras, poltronas nos terraços, se acomodavam nos degraus das escadas ou no próprio chão. As mães deitavam as crianças em camas e berços, na casa-grande ou nos seus anexos. Convidados se despediam, cobrando a retribuição da visita. Abraços, tapas nas costas, lembranças, voltem sempre, a casa é de vocês, nesse ano foi ainda melhor do que no ano passado, impossível, foi sim, não teve balão, mas o trio era afinado... Desafinado mesmo estava o conviva bêbado. Perguntavam se ia dirigir naquele grau, nem um quatro era capaz de fazer.

– Oxe! Faço até um cinco.

E tentava cruzar a perna esquerda sobre a direita, mantendo-se de pé, sem apoio. Caía para os lados, precisando ajuda dos amigos para não beijar o chão. Risos, um recomeço de festa. Estou bom, insistia o bêbado na voz trôpega, as palavras aos tombos, o hálito vindo das profundezas de um inferno estomacal. Aconselhavam dez remédios ao mesmo tempo, traziam café forte da cozinha e o amigo ia ficando até o dia amanhecer, quando se entregava ao sono, numa cama ou num colchão improvisado.

Lá para as tantas, a fogueira já queimara boa parte da lenha, os copos expunham restos e a comida murchara, sem sedução. As conversas descambavam em declarações de afeto, pequenas desavenças, choros, saudades do filho morto num acidente de carro, reclamações contra os que faltaram à festa, como se já não houvesse convidados de sobra. Se faltavam alguns parentes legítimos, excediam os putativos, os agregados bem ao estilo das famílias de passado canavieiro.

A granja também possuía capela e sacerdote, padre de quarto reservado, lugar garantido à mesa e conversa em sala. Amigo, conselheiro, religioso formado no discurso e na prática da igreja progressista. Celebrava o sagrado e o profano de todos os rituais da família: benzeduras, bodas, casamentos, batizados e recomendação das almas que se encantavam.

Sem sair de perto da mesa de comilanças, eu lembrava um poema de Ascenso Ferreira. Reforçava minha impressão da casa-grande dos Cerqueira Antunes, a boa casa pernambucana, de saudosa memória. Entrei no mundo das granjas Sajutá e São Saruê com minha esposa Avelina, e fui dando entrada aos filhos Joaquim, Isabel e Tomás, por ordem de nascimentos. Telefonava na maior confiança e pedia:

– Posso passar o final de semana com vocês?

Nunca escutei um não, e nunca um sim que me parecesse não sincero. Encontrava os quartos arrumados, com jarros de flores e roupas de cama limpas e perfumadas. Em todos esses esmeros eu percebia o zelo de Dona Lourdinha, uma aristocrata de alma generosa e acolhedora, atenta em servir. Sentávamos em torno da mesa comprida para os cafés da manhã, almoços e jantares que se estendiam por horas, ocupando a maior parte dos dias. Eu inventariava histórias em restos de louça da Companhia das Índias, pratos azul borrão e pombinho, sobras de sucessivas divisões entre os membros da família. Todos expostos em armários e aparadores com zelo e nobre desdém, o sentimento de um passado desfeito, lembrado com firmeza e sem saudade.

Houve época em que fui profundamente infeliz. As pessoas questionavam o motivo de tanta tristeza, minha escolha por caminhar entre as sombras. Nem sempre o homem escolhe a porta a abrir, ela se abre movida por uma vontade estranha a ele, e o engole. Foi nesses anos de pouca lucidez que eu frequentei a casa de Seu Renato e Dona Lourdinha, assiduamente. Os dois velhinhos amáveis, passeando de mãos dadas entre os canteiros dos jardins, lembravam as figuras dos quadros de Chagall. A qualquer momento eles poderiam se elevar às alturas do céu, provocando o riso das cozinheiras ocupadas em assar um pernil de porco e espantar enxames de moscas.

Ao término das refeições, quando parecíamos mais felizes do que éramos, por conta da nossa saciedade; depois das conversas jogadas fora, das anedotas e risos, e das lembranças repetidas; na comoção do café com bolos e licores, seu Renato Antunes, sonolento e esquecido, o mais leve de todos nós, olhava sério para os convivas e repetia frases de A festa de Babette, o conto de Karen Blixen. De verdade, isso nunca aconteceu, mas sempre imaginei. E justamente por ser imaginação me parece mais real e possível.

Chegará a hora em que os nossos olhos se abrirão e, finalmente, reconheceremos que a graça não tem fim. 

RONALDO CORREIA DE BRITO, escritor.

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