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Cerveja: puro malte com personalidade

Atual bebida alcoólica mais popular do mundo ganha adeptos para a sua fabricação artesanal, criando produtos diferenciados para o consumo

TEXTO OLIVIA DE SOUZA
FOTOS LEO CALDAS

01 de Abril de 2015

Feita num sistema caseiro, a Turvalina já conta com seis edições numeradas

Feita num sistema caseiro, a Turvalina já conta com seis edições numeradas

Foto Leo Caldas

Quem tem contato com cervejas produzidas de forma artesanal percebe logo certas características que as diferenciam da famosa “loirinha” consumida em bares e botecos. Dependendo dos tipos de ingredientes utilizados durante o processo, sua coloração pode variar do tom amarelado ao mais escuro, passando pelo avermelhado; o sabor é mais encorpado, adocicado ou mais puxado para o amargo; o teor alcoólico é mais forte ou fraco (derivado da fermentação dos ingredientes tradicionais), entre outras peculiaridades. Ao contrário do processo seguido pelas grandes indústrias – que visam atender um público grande, massificado –, as microcervejarias atentam para a qualidade do produto final, estabelecendo um compromisso com o perfil sensorial de cada sabor. Acompanhando o processo do começo ao fim, adaptando e alterando o que for necessário, os mestres cervejeiros preparam receitas elaboradas, num processo longo, que comumente resulta em lotes de sabores peculiares.

Ao contrário dos produtos das grandes indústrias, que adicionam “cereais não maltados” em sua composição, como milho e arroz, produtores artesanais seguem a tradição da Lei da Pureza da Cerveja (Reinheitsgebot) – o mais antigo código de alimentos do mundo –, instituída em 1516, na Baviera, região sul da Alemanha, e que determina que uma cerveja deve contar apenas com água pura, malte, lúpulo e levedura em sua composição. Cervejas que são criadas sem o propósito de atingir grandes volumes de venda, mas, sim, de agradar ao paladar de quem a consome (e não apenas “matar a sede”). Algumas casas, além da matéria-prima básica, acrescentam ingredientes especiais para ampliar a experiência gastronômica dos bebedores, revelando outro aspecto notável desse tipo de bebida: sua grande capacidade de harmonizar com diversos tipos de comidas e tradições culinárias.

Esse resgate da cultura da cerveja ainda é recente, e tem se tornado tendência mundial, para além dos países de grande tradição como Inglaterra, Alemanha e Bélgica. É cada vez maior o número de cervejeiros alquimistas que buscam desenvolver seus próprios produtos, tanto para consumo pessoal quanto para a venda. Nos Estados Unidos, a marca Budweiser – por anos líder no mercado –, hoje, é ultrapassada pela produção artesanal de cerveja (craft breweries). A tendência é também observada no Brasil, sobretudo em Pernambuco, onde o consumo e a venda autoral começam a ganhar cada vez mais adeptos, com fabricação em baixa escala, qualidade, sabor diferenciado – e o mais puro malte.


Belmiro Correa e Leta Vasconcelos criaram três receitas para
a cerveja Risoflora

NA TRILHA DO VINHO
“Falando do cenário macroeconômico, a cerveja hoje está seguindo o caminho que o vinho trilhou, há aproximadamente cinco anos. As pessoas se interessaram mais pelos processos de produção da bebida e a perceber a perda de qualidade das grandes marcas, passando, então, a exigir um produto diferenciado. Na questão regional, entendemos que é interessante produzir e valorizar um produto feito aqui”, afirma Gustavo Acioli, um dos donos da cerveja Duvália, ao lado dos irmãos Mário e Bartolomeu Acioli. Além do espírito empreendedor dos três, um dos facilitadores na criação da Duvália foi a experiência profissional anterior de Gustavo no ramo da cervejaria, e sua formação em Química, que lhe permitiu compreender melhor os processos de fabricação e conceber as receitas da marca.

Criada há dois anos, em Olinda, de maneira informal, sem fins lucrativos e focando primeiramente no consumo interno, a marca hoje tenta abrir espaço no mercado para a comercialização formal do produto – ser vendida em bares, mercados e cervejarias. A Duvália é elaborada em três receitas: clara tipo Ale (a famosa “loirinha”), Weiss e a Mucama (do tipo Stout, com adição de mel de engenho). Está em fase de estudos a produção de uma India Pale Ale (IPA). A cervejaria produz atualmente cerca de 200 litros por mês, vendidos apenas por encomenda, em festas e confraternizações, mas a tendência é de que, daqui a menos de um ano, eles possam iniciar a comercialização do produto com a medida de 2 mil litros. “No final do ano passado, decidimos partir para o caminho formal, que é bem longo e difícil”, disse Mário.

Outra cervejaria artesanal pernambucana funciona há aproximadamente seis meses no 11º andar do Edifício Pernambuco, localizado no Bairro de Santo Antônio, centro do Recife. A Risoflora despontou no final de 2014 como outro destaque da produção artesanal no estado, tendo à frente o mestre cervejeiro Belmino Correa e sua esposa, Leta Vasconcelos. Da primeira brassagem (nome que se dá ao cozimento do malte), em fevereiro, até o lançamento oficial da marca, em outubro de 2014, foram muitos experimentos e consumo entre amigos, para que se pudesse chegar às três receitas que hoje compõem a marca: a Pale Ale (clara, com teor alcoólico de 5,7%), Indian Ale (com adição de rapadura e teor mais forte, de 6,9%) e a Weiss com mel (a mais fraca, com 4,8%). A dupla ampliou sua litragem para 250 litros por mês e trabalha através de encomendas e eventos mensais no apartamento, onde são feitas as entregas dos pedidos.

Segundo Belmino, o malte pielsen começou recentemente a ser vendido na região, barateando um pouco o processo de coleta da matéria-prima. No entanto, outros grãos mais específicos e o lúpulo, que não é produzido no Brasil, ainda são trazidos de São Paulo. O teor alcoólico da bebida é definido pela quantidade e pelo tipo de malte que o mosto (a água rica em açúcares, decorrente da fervura do malte) recebe. “Toda cerveja é um blend de diferentes tipos de grãos de malte. Alguns dão mais gosto e cor, outros possuem mais potencial de se transformar em amido, logo, em álcool”, revela.

Belmino e Leta não têm pretensões imediatas de aumentar a produção. Por hora, estão satisfeitos com as encomendas e com os eventos mensais realizados no andar. Mas não descartam a possibilidade de, posteriormente, venderem as cervejas em escala comercial. “Penso que, futuramente, poderíamos registrar a Risoflora, aumentando nossa litragem para 2 mil ou até 10 mil litros, quem sabe. Mas ela só seria distribuída para o mercado daqui”, planeja Belmino, que aponta a questão do imposto como outro entrave para a ampliação das cervejarias de pequeno porte. “A legislação atual não separa a micro da grande cervejaria, a incidência de impostos é a mesma para as duas, de 60%. Isso, a longo prazo, quebra a empresa, que não tem estrutura para competir com a indústria.”


A produção da Duvália começou para consumo próprio e agora ganha caráter comercial

Tanto a Duvália quanto a Risoflora utilizam processos automatizados de produção da bebida, que monitoram e facilitam a repetição das receitas, sem grandes diferenças no resultado final. O que não impede, é claro, que a bebida possa ser feita através de métodos mais caseiros, “no olho” e com a mão na massa, conferindo um charme a mais para a mesma. É o caso da cerveja Turvalina, produzida por Vitor Maciel e Bia Baggio, no Bairro da Boa Vista. Apesar de recente (foi lançada em setembro de 2014), a bebida já conta com seis edições numeradas, todas tipo Ale: nº 1 (Belgian Blonde); nº 2 (American Pale); nº 3 (Robust Porter); nº 4 (Red) e a edição especial nº 666 (IPA).

Depois de um workshop de produção de cervejas promovido pela Acerva–PE (Associação dos Cervejeiros Artesanais de Pernambuco, que hoje conta com mais de 100 associados), o casal investiu na compra da matéria-prima e adaptou materiais para produzir. “O investimento inicial depende muito do quanto você está disposto a fazer e a gastar. Se você compra os kits prontos, tudo sai mais caro. A gente procurou fugir disso, adaptando os equipamentos, bolando coisas diferentes. A maioria dos cervejeiros caseiros faz o próprio material. Inventar seu método de produção faz parte da brincadeira também”, afirma Vitor. Os rótulos das bebidas são desenhados pelos dois, ela fica com os números pares, e ele, com os ímpares.

Única edição elaborada de forma colaborativa, a Turvalina 666 foi feita em parceria com os músicos Paulo do Amparo, Grilowsky e o gaúcho Wander Wildner. Segundo Vitor, a receita é baseada na música Cerveja Caseira 666, do trio: “É uma música cuja letra é uma receita de como fazer uma cerveja caseira. Perguntamos pra Paulinho se ela era baseada em alguma marca já existente. Não era, aí tentamos seguir mais ou menos a receita da música, com alguns pequenos ajustes. Paulinho fez o rótulo, Grilo fez um jingle. Wander (que também é mestre cervejeiro) não pôde participar diretamente, mas nos deu uns toques importantes, e mandamos uma cerveja pra ele”.

De acordo com Bia, há uma vontade de crescer para que a marca possa ser comercializada numa escala maior. Segundo ela, mais estrutura e tempo, além de um processo automatizado, seriam necessários para isso, pois, por ainda ser caseiro, dificulta a repetição das receitas, entre uma leva e outra. “Como a gente se divide entre outras responsabilidades, temos nos disciplinado a cozinhar numa frequência boa, de, pelo menos, seis vezes por mês. No momento, o objetivo é aperfeiçoar as receitas que temos, para que a gente possa pensar em outras coisas (as de número 1 a 2 e a 3 estão bem-encaminhadas). Mas ainda vai chegar o momento em que um dos dois vai abrir mão do trabalho e se dedicar à Turvalina, para que ela possa crescer.”


Depois de participar de um workshop, Vitor Maciel investiu na compra de matéria-prima para iniciar a produção

HISTÓRIA
O homem antigo descobriria, aproximadamente em 10.000 a.C., por acaso, o processo de fermentação que originou as primeiras bebidas alcoólicas. Os primeiros registros arqueológicos de consumo dessa bebida apontam para os sumérios, da Mesopotâmia, que teriam percebido que a massa do pão, quando molhada, fermentava, gerando álcool. Àquela altura, ninguém poderia supor que o líquido obtido da fermentação do malte – da cevada ou do trigo – seria o pai da bebida alcoólica mais popular do mundo no século 21: a cerveja, cujo epíteto descende do gaulês cerevisia, uma homenagem à deusa romana Ceres, emblema do trigo e da abundância terrestre.

Documentos históricos apontam que, em 2100 a.C., já era popular, entre os sumérios, o consumo de um tipo de bebida fermentada a partir de cereais, um líquido de aparência escura e de gosto bem forte, uma espécie de protótipo do que seria a cerveja contemporânea. Na Idade Média, mosteiros fabricavam cerveja, adicionando ervas para diferenciá-las e aromatizá-las, como a sálvia, o gengibre e o lúpulo – este último foi introduzido no processo entre os anos 700 e 800, e confere amargor, além de funcionar como um conservante natural da bebida.

Segundo o escritor e enólogo Sergio de Paula Santos, no livro Memórias de adega e cozinha (Editora Senac), os primeiros registros da presença de cerveja no Brasil aconteceram no século 17, durante a presença holandesa no Recife, cidade que comportou a primeira cervejaria das Américas. Escreve Paula Santos: “Nassau, homem culto e esclarecido, que estudara história, filosofia, matemática, teologia, além de poliglota, trouxe consigo, para o Brasil, um grande número de cientistas, artistas e artesãos. (…) Veio também, com Nassau, um mestre cervejeiro, Dirck Dicx, com a planta de uma cervejaria e com seus componentes, para serem montados na capital do Brasil holandês”. Segundo ele, a cervejaria se instalou em outubro de 1640, em La Fontaine (antiga residência de Nassau, no atual Bairro das Graças). A produção e a distribuição da bebida, de alta fermentação e cevada, e provavelmente sem lúpulo, foi iniciada em abril de 1641, e seu consumo, segundo registros, permaneceu até o final da ocupação, em 1654. A entrada definitiva da bebida no país demorou, desencorajada pelos portugueses, que temiam perder o mercado de seus vinhos. Só em 1808 ela foi trazida pela família real – apenas porque o rei Dom João era um profundo apreciador da bebida. 

OLIVIA DE SOUZA, editora da Continente Online.
LEO CALDAS, fotógrafo.

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