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A imagem em seus desdobramentos

Coletânea com artistas de todo o Brasil aponta os usos heterogêneos que cada um deles faz da câmera

TEXTO Luciana Veras

01 de Abril de 2015

Obra de Cinthia Marcelle está na capa do livro 'A herdeira'

Obra de Cinthia Marcelle está na capa do livro 'A herdeira'

Foto Cinthia Marcelle

Em Sobre a fotografia, compilação de diversos ensaios datada de 1977, talvez a mais famosa de suas publicações, a filósofa norte-americana Susan Sontag (1933–2004) escrevia: “A fotografia faz mais do que redefinir o conteúdo da experiência cotidiana (pessoas, coisas, eventos, o que quer que vejamos – ainda que diferentemente e muitas vezes com desatenção – com a visão natural) e acrescenta vastas quantidades de material que jamais chegamos a ver. A realidade como tal é redefinida – como objetos para exposições, registro de seus escrutínios, alvos de inspeção”.

Na abertura de Outras fotografias na arte brasileira séc. XXI, quarto volume de uma série sobre a produção artística contemporânea iniciada pela Cobogó em 2011, a organizadora e editora Isabel Diegues alude ao conhecido texto de Sontag, afirmando que Sobre a fotografia reconhece “os abalos sísmicos que o recurso fotográfico produziu no sólido terreno da relação entre imagem e verdade sobre o qual o Ocidente havia fincado suas bases a partir do pensamento platônico”. Portanto, é a lógica de inquirir o “desdobramento da fotografia” que norteia o livro, lançado apenas dois anos após Fotografia na arte brasileira séc. XXI.

Outras fotografias… lastreia-se em 24 artistas - entre os quais se incluem nordestinos como o baiano Ayrson Heráclito; mulheres como a paraense Berna Reale; profissionais que atuam somente com a fotografia, como o pernambucano Gilvan Barreto ou como a brasiliense radicada em Pernambuco Bárbara Wagner; e outros que a adotam como um entre os suportes a expressar sua criação artística, a exemplo da espanhola Sara Ramo, que vive e trabalha em Belo Horizonte, e do cineasta pernambucano Gabriel Mascaro. No primeiro tomo, eram 39, e há quatro interseções: Claudia Andujar, Jonathas de Andrade, Miguel Rio Branco e Rosângela Rennó.


Ana Lira mapeia o desejo eleitoral em Voto!. Foto: Ana Lira/Divulgação

“O projeto da coleção é uma espécie de levantamento de caminhos possíveis para a arte brasileira, um pouco na contramão de como se pensa a arte hoje em dia. É comum pensá-la a partir de muitos aspectos que não o meio, mas o que o meio gera em comum? De que maneira está sendo usado pelos artistas? Essas são perguntas que nos acompanham”, diz Isabel à Continente. Depois de questionar a tradição figurativa (com o hoje esgotado Pintura brasileira séc. XXI e com Desdobramentos da pintura brasileira séc. XXI), surgiu o desejo de esquadrinhar as possibilidades discursivas, representativas e estéticas da fotografia. “O que nos interessa é pensar a potência da fotografia enquanto representação da realidade. Se uma imagem representa a realidade, existe uma maneira de exercer esse poder, de construir essa outra realidade para dar conta de uma realidade observada”, comenta.

A proposta é olhar para trabalhos de matizes distintos, concebidos por artistas que referendam ou destituem o caráter de “real representado”; que deturpam a fotografia para inventar novos sentidos para o objeto e/ou a situação retratados; que a colocam em paridade com textos ou a despem para algum tipo de manipulação; ou ainda que a utilizam para repensar o país que se construiu nas últimas décadas a partir dos seus refugos – materiais e humanos, simbolicamente reunidos no díptico A herdeira, da série A conjunção dos fatores, da artista mineira Cinthia Marcelle, estampado na capa do livro.

Isabel Diegues entende que os livros não encerram discussão alguma, mas apontam possibilidades: “Na era da apropriação mundana, da multiplicação, do barateamento, queríamos atentar para a expressão artística da fotografia e para pesquisas e reflexões entre aqueles que a usam como eixo central de um trabalho artístico. Para isso, eu, que não sou especialista em História da Arte, formei um conselho para discutir essas questões e construir o livro”. Tal papel coube aos críticos e curadores Júlia Rebouças, Luisa Duarte e Moacir dos Anjos, que escreveram os ensaios Sobre a fotografia e o real, arte e caos, Agora (já passou) e Evidências do mundo (insuficientes e necessárias), nos quais aprofundam perguntas e sensações que as imagens dispostas em quase 300 páginas certamente hão de despertar. Não somente no público que as observar, mas também nos próprios artistas que dele participam.


Romy Poczatruk e a utopia perdida da Transamazônica em Fordlândia.
Foto: Romy Pocztaruk/Divugação

MAPEAMENTOS
A fotógrafa pernambucana Ana Lira enaltece a importância de “propor um diálogo” entre obras no patamar do work in progress e aquelas já expostas anteriormente. Nessa categoria, por exemplo, enquadra-se a sua série Voto!, presente no livro com cinco imagens e quatro “santinhos” de políticos e mostrada na 31ª Bienal de São Paulo, em 2014. O ensaio nasceu em uma viagem a Cabrobó, no sertão pernambucano, quando Ana presenciou o comício final do candidato a prefeito que se sagrou vencedor com mais de 80% dos votos. Na volta ao Recife, em outubro de 2012, e ante uma “conjuntura de esquizofrenia” que permitia partidos antagônicos no plano federal posarem de aliados no âmbito local, ela passou a retratar os cartazes de propagandas políticas e as intervenções feitas neles pela população.

Resultado: imagens que não apenas espelham a ação do tempo, mas principalmente “a crise de representação política e a deterioração das instituições no país”. “Os cartazes assumem outros contornos, as figuras dos candidatos parecem espectros, fantasmas a modificar a paisagem e durar mais do que as próprias parcerias políticas. E como as campanhas se sobrepõem, os cartazes vão sendo colados um por cima do outro, numa sobreposição de imagens que diz muito sobre o modus operandi político brasileiro”, pensa a fotógrafa, que considera Voto! “um mapeamento do desejo eleitoral” e por isso não pretende encerrá-lo antes das eleições de 2016.

Outra série que se institui no “durante” é Favela, do pernambucano Pio Figueiroa. Ele é um caso curioso: esteve no primeiro volume da coleção que a Cobogó dedicou à fotografia como membro do coletivo Cia de Foto e, com seu primeiro projeto solo, volta a ganhar reconhecimento. “Para mim, é uma novidade ainda assustadora. A maioria dos trabalhos do livro, de alguma forma, estão realizados. As obras de Claudia Andujar, Pedro David, Cinthia Marcelle ou Gabriel Mascaro, por exemplo, já estão concluídas. A minha, não. A ideia de reconstruir o imaginário das favelas, de rebater a noção de que se trata de algo provisório, quando se tem a mesma idade da República, está em pleno processo. Ainda não expus, nem divulguei. E depois de um tempo voltado à fotografia de acervo, de arquivos, voltei à performance de campo, à rua, à vida lá fora”, explica.


Yuri Firmeza se insere na paisagem quase apocalíptica, em Ação 3: Foto: Yuri Firmeza/Divulgação

Sete instantâneos obtidos no Morro Santa Marta, no Rio de Janeiro, e no Jardim Pantanal, em São Paulo, ratificam que as favelas ainda são tratadas “como no início do século, não como efeito, mas como causa da miséria, numa mentalidade que persiste com outras vestimentas”, assegura Pio. E enfocam um contingente comumente “excluído das equivalências de realidade que são criadas”, como pontua Moacir dos Anjos em seu ensaio.

Juntam-se, assim, aos ianomâmis da série Marcados, de Andujar, aos encarcerados de Carandiru, de João Wainer, aos sertanejos de Negativo sujo, de Miguel Rio Branco, aos moradores de rua cearenses de Fábula do olhar, de Virginia de Medeiros, ao jovem negro em O espelho e a tarde, de Dias e Riedweg, e aos africanos eternizados por Paulo Nazareth em Vendeur du banana e Journalier, em imagens que escancaram o outro “para que este fique menos exposto uma situação de vulnerabilidade, para que saia da sombra da arriscada invisibilidade social”, nas palavras de Moacir.

CONTRA-ARGUMENTAÇÕES
Na sua contribuição ensaística, a curadora Júlia Rebouças pondera: “O que demarca o lugar do artista é justamente a sua capacidade de contradizer a opinião corrente, de dar conteúdo às formas”. É possível tomar tal afirmação como parâmetro para apreender o discurso que se extrai da abstração em Mancha de óleo, de Rivane Neuenschwander, e Projeto Chernobyl, de Alice Miceli, ou do microcosmo garimpado por Pedro David em As coisas que caem do céu. Ou ainda para averiguar o projeto que a artista mineira Lais Myrrha apresentou no Bolsa Funarte de estímulo à produção em artes visuais em 2013, de que resultou o livro Breve cronografia dos desmanches, com excertos presentes em Outras fotografias. “Não sou fotógrafa, mas uma expansão da ideia de fotografia faz sentido em meus trabalhos”, avisa Lais.


Trabalho de Pio Figueiroa é um work in progress. Foto: Pio Figueiroa/Divulgação

“Os desmanches surgiram de observações minhas nos últimos anos: a aceleração da especulação imobiliária, a alta nos preços dos imóveis, a velocidade com que passaram a ser demolidos. Passei a fazer um estudo comparado de imagem, fotografando lugares que desabaram casualmente e coisas que eram voluntariamente demolidas, criando assim os desmanches involuntários e voluntários. Mas vi que essas duas topologias se desdobravam em outras, infinitas”, relembra. “Nunca explico o que são as imagens, que podem ser minhas ou não, e os textos que servem de legenda são em parte ficcionais, em parte fruto da pesquisa e de histórias que fui coletando. O que me interessa é a contaminação entre a palavra e foto, o que me move é a relação das imagens com o texto e com a memória”, situa Lais.

O conceito de memória – pessoal, coletiva – surge também no legado dos jovens Romy Pocztaruk e Yuri Firmeza, artistas de pouco mais de 30 anos que incorporam a fotografia ao seu léxico estilístico de videoinstalações, filmes, intervenções e performances. “O que me interessa na fotografia é ficcionalizar a realidade ou tomá-la sem tentar representá-la. Quero que as fotos, de alguma forma, instaurem uma nova realidade”, aponta o cearense Yuri, autor de A fortaleza – em que reencena uma pose infantil na mesma varanda e com a verticalizada metrópole homônima atrás – e das séries Ruína e Ação. Nesta última, ele se mescla ao entorno para abrir um viés quase apocalíptico: “Eu me insiro naquela paisagem de fim de mundo com o interesse de promover uma transformação, tanto do ponto de vista da textura, da carnalidade, como de uma certa dramaturgia”.

Já nas composições de Ruína, que guiaram Yuri a montar Nada é, filme exibido na 31ª Bienal de São Paulo, vemos os resquícios de moradias em Alcântara, no Maranhão. Pouco mais de uma hora de barco de São Luís, foi um dos municípios mais ricos do estado no século 18 e hoje é um lugar que paradoxalmente guarda uma relação com o passado imperial – por uma visita de Dom Pedro II que nunca houve, mas que deixou a Festa do Divino como herança – e um flerte com o futuro, por sediar uma base de lançamento de foguetes da Força Aérea Brasileira.


Laís Myrrha propõe uma partida entre texto e imagem. Foto: Laís Myrrha/Divulgação

Esse contraste entre o que se passou e o porvir impeliu a gaúcha Romy a percorrer os restos da rodovia Transamazônica e a criar as séries Lost utopia e A última aventura, derivadas da jornada empreendida em 2011, financiada pelo edital do Rumos Itaú Cultural. Ruínas, aliás, são personagens e temas recorrentes ao longo de Outras fotografias..., sinalizando fracassos, erros e esquecimentos emergindo, a partir de entulhos ou prédios outrora habitados, como obras de arte. Aqui, trata-se do ocaso do plano do governo militar de “fazer uma estrada que pudesse ser vista da lua”, como recorda a artista.

Ela conta que encarou a rodovia com o espírito de uma arqueóloga: “Imaginei fotografias que explorassem a ideia de conquista, dos exploradores, da utopia do presidente Médici de conectar os oceanos Atlântico e Pacífico e da decadência dessa utopia”. No meio do caminho, havia Fordlândia, a cidade da série A última aventura, na qual ela terminou por se demorar mais do que o previsto. “O trabalho, para mim, não são apenas as imagens, mas a vivência com as pessoas do local. Fui à casa delas, pude entrevistá-las, ouvi suas histórias. Tanto que ainda tenho um registro em vídeo que não consegui, mas que quero finalizar. Penso nesse diálogo com a antropologia visual, já que se trata de material que documenta uma história esquecida do Brasil”, sustenta Romy Pocztaruk.

O conjunto imagético e a fortuna crítica de Outras fotografias na arte brasileira séc. XXI convidam, pois, a revisões de um país ignorado, mergulhos em dramas públicos e particulares e ao exame de situações para as quais sucumbem os esforços de fácil rotulação. Tal qual a fotografia, suporte/linguagem em investigação, o livro é mais do que aparenta ser. Portanto, como prenucia a curadora Luisa Duarte no texto Agora (já passou), “qualquer dose de concentração e dedicação de nossa parte, análoga àquela empreendida pelos artistas, terá sido um passo a mais rumo a uma experiência diversa, mesmo que mínima, com o mundo, e, por consequência, com nós mesmos e o outro”. 

LUCIANA VERAS, repórter especial da revista Continente.

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