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Jocy de Oliveira: Intimidade com os gênios

Em 'Diálogo com cartas', compositora e pianista expõe correspondência com alguns dos principais gurus da música de concerto do século 20

TEXTO Carlos Eduardo Amaral

01 de Setembro de 2014

Jocy com Stravinsky, durante ensaio nos EUA

Jocy com Stravinsky, durante ensaio nos EUA

Foto James Rackwittz/Reprodução

O hipocondríaco Igor Stravinsky, o mulherengo contumaz Luciano Berio, o versátil Lukas Foss, o errante Claudio Santoro, o místico Olivier Messiaen, o irreverente John Cage, o megalomaníaco Karlheinz Stockhausen e o meticuloso Iannis Xenakis. Costumamos ver o nome desses compositores apenas nos livros de história da música (mesmo assim, nunca o de todos os oito juntos, pois Foss só alcança alguma repercussão nos Estados Unidos, e Santoro, aqui no Brasil) e sem adjetivos que se refiram às suas personalidades (os quais realmente não interessam, quando se fala da obra deles). Apenas agora, com as memórias de Jocy de Oliveira no recém-lançado Diálogo com cartas, uma nova linha narrativa passa a ser costurada entre eles, enriquecida – ao menos para o público brasileiro – por uma privilegiada perspectiva pessoal, que começou a ser construída em 1956.

Claro que não ficaria faltando, seja em meio às histórias de Jocy com cada um, seja em um capítulo à parte, o sisudo e sarcástico maestro Eleazar de Carvalho, primeiro marido da pianista que, a partir do final dos anos 1960, foi abraçando aos poucos a opção pela criação musical em detrimento de uma carreira de intérprete consolidada e elogiada por todos os compositores citados. Enquanto Jocy encarava partituras ultra-arrojadas, algumas a ela dedicadas, Eleazar ia preparando uma nova geração de regentes, que ocuparia os principais estrados de orquestra do Brasil e do mundo, e deixando “causos” impagáveis para a posteridade, como o do encontro com a rainha Elizabeth da Bélgica e o da falsa morte de Camargo Guarnieri, após o rompimento com o compositor paulista.

O primeiro capítulo do livro – e o mais longo – contemplou , respectivamente, Igor Stravinsky e Luciano Berio (há um capítulo ainda maior, intitulado Histórias de bastidores, mas que foi subdividido em quatro, abarcando Santoro, Foss, Stockhausen e Xenakis). Ambos foram os personagens principais de dois espetáculos multimídia que Jocy escreveu, à medida que ia organizando Diálogos com cartas: revisitando Stravinsky (2011) e Berio sem censura (2012), em que o público pôde conhecer uma parcela das correspondências e fotos agora publicadas.


"Meus melhores agradecimentos pela execução de Capriccio", de Stravinsky

Outros dois capítulos são centrados nas óperas de Jocy e na música contemporânea. Um recapitula o processo de criação dos dramas musicais que ela compôs, os quais sempre têm uma mulher como protagonista, e o outro comenta os principais marcos e movimentos da música de concerto ao longo do século passado, para tentar responder a questão “a música experimental ainda existe?” e indicar caminhos (a compositora argumenta, certa hora: “Vivemos numa época visual. Entretanto, nossos concertos não mostram preocupação alguma com o ato teatral de uma performance”).

EPISTOLAR
A estratégia textual do livro (à exceção do capítulo sobre as óperas da autora) é simples: ir expondo cronologicamente as cartas recebidas de cada músico e intercalando comentários e contextualizações a elas. Felizmente, os testemunhos de Jocy não dão vez para pudores desnecessários, que poderiam jogar para debaixo do tapete episódios embaraçosos e polêmicos, e assim fazer média com os herdeiros e admiradores dos compositores. Ao mesmo tempo, ela evitou fofocas e intrigas labirínticas, oferecendo, em vez disso, análises interpretativas e composicionais valiosíssimas, em especial as que fez sobre as fases estéticas de Claudio Santoro, as fontes musicais de Messiaen e o papel crucial de Cathy Berberian para a descoberta de sonoridades vocais na obra do então marido Luciano Berio.

As cartas vão das mais triviais comunicações, como um pedido de notícias de vida ou uma justificativa pela demora na resposta, até relatos mais extensos, feitos durante alguma folga, que falam de planos de viagem, propostas para concertos e gravações de discos, impressões sobre cidades distantes, angústias e tudo o mais, até os galanteios descarados e recorrentes de Berio e as detalhadas exigências de Stockhausen para vir se apresentar no Rio de Janeiro em 1988. Além da transcrição no idioma original e da tradução na íntegra, os escritos estão todos reproduzidos fotograficamente, alguns servindo de base para o projeto gráfico do livro, o que permite uma análise extra aos mais curiosos, pela caligrafia ou pela estruturação do discurso à mão.


Eleazar de Carvalho foi o primeiro marido da pianista. Foto: Whitestone Photo/Reprodução

Essa análise não tem como ser aplicada a Stravinsky, pois todo o diálogo que o envolve se dá entre Jocy de Oliveira e Robert Craft, pupilo e fiel escudeiro do gênio russo e de sua esposa Vera. Robert, Vera e Igor, como aponta a compositora, mais formaram uma entidade tríplice, cujo porta-voz foi (ou melhor, continua sendo) Robert, que abriu mão da própria vida profissional e pessoal para assumir essa missão. Dois encontros de Jocy com Stravinsky – em 1963, na segunda vez em que o músico esteve no Rio de Janeiro, e três anos depois, em Saint Louis, quando Eleazar de Carvallho regia a sinfônica daquela cidade norte-americana – também a guiaram na reconstrução das memórias do capítulo inicial; o primeiro deles, registrado em um diário pessoal que ficou guardado até 2007, quando Diálogo começou a ser gestado após receber bolsa da Rockfeller Foundation.

PASSAGENS HILARIANTES
Um dos diálogos mais interessantes das mais de 400 páginas de memórias é o do impasse entre Jocy e Xenakis para a execução de Synaphai, peça para piano e orquestra que o romeno-francês escreveu para ser interpretada por ela. Estudando a fundo a complexa partitura que lhe foi entregue, na qual a parte para piano trazia um pentagrama para cada dedo (algo que só um ciborgue conseguiria ler e tocar comodamente), Jocy chegou a reduzi-la para os convencionais dois pentagramas, porém esbarrou na exigência de Xenakis de que tivesse consigo a parte com 10 pentagramas durante a execução. Quem cedeu? Só indo à página 357 para tentar saber.

Pitoresca é a passagem de John Cage pelo Brasil em 1985, junto com seu companheiro Merce Cunningham, marcada pelo aperreio com a falta de comida macrobiótica, pelas partidas de xadrez nas horas livres e pela estranheza da culinária nacional. Sua mais inusitada reação, contudo, se deu ao ouvir uma apresentação de um dos maiores mitos da música brasileira: “Ao chegar a São Paulo, levaram-me a um concerto sem pé nem cabeça de um homem barbudo, com longos cabelos brancos, tocando uma música que doía nos ouvidos de tão forte, e, após este desastre, ainda me arrastaram para comer uma comida preta chamada feijoada!” – palavras que poderiam se esperar de qualquer compositor, menos daquele que foi o mais incompreendido da história, graças aos quatro minutos e tantos segundos de silêncio que transformou em música. Talvez esse “causo” de Cage só perca em bom humor para o dos biscoitos “premiados” que Lukas Foss comeu antes de um concerto.

Das contribuições brasileiras mais notáveis aos episódios do livro, estão a “peixada” e a macumba. Um passeio que Jocy sempre programou como anfitriã no Rio de Janeiro foi para terreiros em favelas e subúrbios, tendo levado até mesmo o polido Stravinsky para conhecer os rituais sincréticos afro-brasileiros, mas não fora ele o mais bem-impressionado com as religiões de matriz africana. Já o apadrinhamento ficou por conta de Eleazar de Carvalho, que primeiro concedeu um prêmio a Claudio Abbado como melhor aluno da temporada no famoso curso que o cearense dirigia em Tanglewood, e, tempos depois, direcionou uma banca julgadora de um concurso de regência para dar a vitória ao italiano.

Jocy de Oliveira, que teve o privilégio de conviver profissionalmente com compositores de ponta da vanguarda europeia e norte-americana, e de estrear e gravar obras deles, queixa-se de que ainda está por se escrever uma história da música sob a perspectiva feminina (que inclusive a reconheça como pioneira da música eletroacústica no Brasil). É verdade, mas Diálogo com cartas, mesmo descontadas as predominantes conversas mais pessoais, toma a dianteira nessa direção – senão como estudo acadêmico, ao menos como indispensável subsídio para tal. 

CARLOS EDUARDO AMARAL, crítico musical e mestre em Comunicação pela UFPE.

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