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Bratislava: Uma cidade gentil, em transição

Fronteira com países atraentes como República Tcheca e Áustria, a capital da Eslováquia mantém resquícios do socialismo, mas começa a atrair curiosos visitantes

TEXTO Jarmeson de Lima

01 de Agosto de 2014

Bratislava

Bratislava

Foto Divulgação

A lembrança da Tchecoeslováquia sempre vem à tona quando lembramos do antigo Leste Europeu. A separação dos países após a queda da cortina de ferro foi bem menos traumática, é verdade, do que a região dos Balcãs da Iugoslávia. Mas nem por isso a Eslováquia mudou radicalmente. Tampouco se mantém aquele local predominantemente socialista. Em um passeio pela região, é possível constatar que, mesmo após 20 anos do fim da Federação, o país ainda se encontra em estado de transição.

Enquanto a República Tcheca se modernizou e aderiu mais rapidamente ao capitalismo turístico, atraindo mais e mais visitantes a Praga, a cidade de Bratislava, capital da Eslováquia, mantém resquícios da era socialista, mesmo fazendo parte da União Europeia (e distante do fluxo de turistas da “Paris do Leste”, como Praga é chamada). Mas se você prefere apreciar lugares e paisagens sem um fluxo intenso de pessoas ao seu lado e na frente das suas fotos, a Eslováquia merece uma visita.

O euro é a moeda corrente no país, que tem um custo de vida bem menor do que o de muitas capitais europeias. Por exemplo, é possível comprar uma das muitas cervejas locais (de boa qualidade e puro malte) por menos de cinquenta centavos de euro, preço equivalente ao de uma de nossas cervejas.

Se o símbolo do capitalismo tal qual conhecemos no Brasil é o modelo norte-americano, com a presença massiva de shopping centers e lojas de grandes marcas, na Eslováquia inteira há menos centros de compras do que na capital pernambucana.


O célebre Rio Danúbio também corta a cidade. Foto: Divulgação

É claro que não seria apenas pelo preço da cerveja e para fugir de shopping centers que alguém se deslocaria até a Eslováquia, ainda mais tendo a República Tcheca ao lado. Como a Eslováquia é o único país da Europa cuja capital faz fronteira com dois outros países, a Áustria e a Hungria, o acesso à Bratislava é facilitado tanto por via terrestre, quanto ferroviária e fluvial. Para chegar lá, nem é preciso ir de avião. Até porque o aeroporto de Bratislava é pequeno e basicamente para rotas curtas e companhias de baixo custo. Basta dizer que o número de passageiros transportados no ano passado foi cinco vezes menor que o do aeroporto do Recife.

Uma aventura mais interessante é ir até Viena e de lá seguir à capital eslava. Por sinal, é bem comum ver gente fazendo pequenas escalas em Bratislava para depois seguir caminho para outros países próximos, uma vez que a viagem de trem para cada destino dura uma ou duas horas. Essa ligação ferroviária com trens partindo de hora em hora de Viena a Bratislava também é um motivo pelo qual o país mantém melhores relações com a Áustria do que com o “ex-irmão” tcheco, distante pelo menos mais umas três ou quatro horas via férrea e por preços que não compensam tanto o roteiro.

PRESTATIVOS
A Bratislava possui tantos castelos, pontes e casarões bonitos quanto os que se pode ver em Praga, com a vantagem de ter bem menos turistas. Pelo fato de a capital tcheca, hoje em dia, ter virado um novo point turístico e estar sendo bem (re)descoberta pelos próprios europeus, os serviços e os valores cobrados na cidade têm aumentado bastante. E isso acaba se refletindo até nos hábitos dos moradores e trabalhadores locais, que estão dando o seu jeitinho de faturar em cima. O modo insistente como cada garçom, vendedor, taxista e até ascensorista tcheco pedem gorgeta pelos seus serviços faz com que você se sinta constrangido em menos de um dia em Praga. Em Bratislava esse (mau) hábito não é recorrente.

A simpatia e a vontade da população eslava em ajudar turistas não europeus também é frequente. E, mesmo que não se entenda o idioma local, ainda é possível se locomover e identificar o funcionamento da cidade. Observei um casal de japoneses carregado de mapas e folhas impressas tentando ir de um ponto a outro travando diálogos incompreensíveis com moradores e aparentemente sendo bem-tratados e satisfeitos com as respostas.


Bratislava atrai visitantes da Europa. Foto: Divulgação

Ao conseguir chegar e se deslocar pela cidade, o visitante é facilmente seduzido pelas ruas de seu centro histórico, muito bem preservado e rico em detalhes exóticos aos não iniciados. Bratislava é conhecida também pelas suas estátuas em lugares incomuns. Ou você acharia normal um lugar onde há uma estátua de um paparazzo em uma esquina, ou a estátua de um homem saindo de um bueiro em uma calçada? São monumentos em bronze que representam profissionais de uma categoria ou simplesmente personagens engraçados que já passearam por aquelas ruas, a exemplo do simpático Schoener Naci, um galante senhor do início do século 20 que tirava seu chapéu em homenagem às damas da época.

Além da oferta de passeios pelas ruas, Bratislava é uma daquelas cidades que se aproveita bem de seus acidentes geográficos, utilizando sobretudo o rio como fonte de deslocamento, entretenimento e lazer. E não é qualquer rio que corta a cidade e, sim, o romântico Danúbio, que divide a fronteira da Eslováquia e atravessa outros países. Em homenagem à importância que o rio tem na região, foi criado o DonauFest, evento que quer conectar melhor os povos dos países e cidades por onde o Danúbio passa.

Por sorte, tive a oportunidade de estar no país justamente durante o período de realização desse festival, em 2013, no final do verão europeu. Pelo fato da Bratislava estar em um ponto estratégico do rio, bem próximo a outras fronteiras, gente da Alemanha, Áustria, Hungria, Croácia, Sérvia, Romênia, Bulgária e até da Moldávia vem celebrar o momento. Como o país concentra um pouco das várias culturas da região e era parte de uma das mais emblemáticas repúblicas socialistas, é natural que outros povos se sintam acolhidos por lá.

ISOLAMENTO CULTURAL
Pequenos (e, às vezes, incovenientes) hábitos nos levam ao antigo estilo de vida socialista na Bratislava. Um deles diz respeito aos banheiros. Por muito tempo, durante o regime comunista, a distribuição e consumo de água era subsidiada pelo estado. Para evitar desperdícios ou sua concentração durante o inverno gelado, o governo criou banheiros públicos nas ruas e praças que poderiam ser usados por todos gratuitamente, sem precisar gastar a água de sua residência ou do comércio. Os antigos diziam que eram impecáveis e a limpeza, exemplar.


Capital possui tantos castelos e casarões quanto Praga. Foto: Divulgação

O problema é que, com o costume, a falta de infraestrutura e de reformas em prédios antigos, muitos estabelecimentos deixaram de construir os próprios toaletes. Na passagem para o novo modelo econômico, o uso da água encanada foi liberado e os banheiros públicos da cidade ficaram praticamente iguais aos que a gente bem conhece pelo Brasil. Quem acaba sofrendo também com isso são os turistas, que devem localizar os melhores bares e restaurantes com sanitários disponíveis. Coincidentemente ou não, cobrar pelo uso do banheiro é uma fonte extra de renda para uma famosa rede de lanchonetes estabelecida por lá.

Apesar de haver uma aura romantizada sobre o período socialista no país, as opiniões dos habitantes se dividem quanto àquele momento. Durante minha passagem por Bratislava, o Slovenské Národné Múzeum abrigou uma exposição sobre a vida no país durante a década de 1960. Em uma reconstituição de época, vários ambientes do local possuíam objetos decorativos, discos, pôsteres de cinema e peças de indumentária. Observando esses itens, era instigante imaginar como viveram os habitantes da Eslováquia em uma época de isolamento cultural do Ocidente, tendo como referência maior a influência soviética, mas com elementos que ocasionalmente furavam este bloqueio.

Havia na exposição mais visitantes de fora do que do próprio país. Indagando a uma moradora de Bratislava sobre a reconstituição de época, ela achou estranho o interesse em visitar algo assim, dizendo que não fazia sentido algum relembrar uma época em que o país viveu “parado no tempo”, numa hibernação de mais de 70 anos. Para ela, aqueles anos 1960 poderiam facilmente ser os anos 1940, 1950... pouca coisa mudara na vida dos habitantes tchecoeslovacos, que se preocupavam muito mais com o trabalho e a alimentação do dia a dia do que com o último lançamento do cinema ou as novas tendências da moda.

Mesmo hoje, com empresariais modernos e prédios de arquitetura ousada sendo erguidos junto a casarões históricos, a vida em Bratislava parece simples e sem grandes desafios, mediada por atividades culturais e esportivas frequentes. Isso, sem falar dos turistas, que passeiam da manhã até a madrugada pela cidade. O que incinta o viajante é descobrir o que a Eslováquia tem de diferente a oferecer e como mantém em equilíbrio o que de melhor herdou desses dois mundos em oposição. 

JARMESON DE LIMA, jornalista especializado em Jornalismo Cultural, integrante do Coquetel Molotov.

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