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Trailer: Parece até que é o mesmo filme

Categoria audiovisual híbrida de cinema e marketing recebe críticas por equívocos, como revelar demais o enredo e se mostrar excessivamente clichê

TEXTO Rodrigo Carreiro

01 de Julho de 2014

Divulgação de 'Psicose' durava mais de 6 minutos e trazia Alfred Hitchcock apresentando o enredo

Divulgação de 'Psicose' durava mais de 6 minutos e trazia Alfred Hitchcock apresentando o enredo

Foto Reprodução

Alfred Hitchcock caminha cuidadosamente pelo quarto do Bates Motel. Voltado para a câmera, falando devagar, ele explica que ali, bem naquele lugar, um crime horrível aconteceu, um crime terrivelmente sangrento. Ao entrar no banheiro, sem economizar na ironia graciosa que se tornou uma marca registrada de sua personalidade, o grande diretor inglês puxa a cortina do chuveiro para trás. Num susto muito bem-encenado (lembremos que Hitchcock costumava, em entrevistas, explicar a diferença entre o susto e o suspense, enfatizando as vantagens do segundo, o que levou o público a se acostumar com a relativa ausência de sustos gratuitos nos seus trabalhos), uma mulher loira solta um grito horripilante, o título do filme cobrindo seu rosto um fragmento de segundo depois.

O trailer de Psicose, que hoje pode ser visto no YouTube e em DVDs e blu-rays do longa, tornou-se um dos exemplos mais celebrados dessa categoria audiovisual híbrida de cinema e marketing, criada para promover futuros lançamentos cinematográficos. Costuma ser lembrado, também, como símbolo de uma pergunta que atormenta cinéfilos de todos os cantos do mundo: o que diabos tem acontecido com os trailers, tão decepcionantes ultimamente?

As reclamações são variadas. A pesquisadora norte-americana Lisa Kernan, que escreveu uma tese de doutorado sobre o tema, fez um inventário dessas diatribes. Os trailers contam demais o enredo do filme. Fazem com que ele pareça melhor do que realmente é. Só mostram as partes bacanas. Contam todas as piadas engraçadas. Mentem descaradamente. E soam excessivamente altos. Kernan só esquece de mencionar uma característica – talvez a mais fundamental, aquela que engloba todos os comentários em uma única frase: atualmente, todos eles se parecem muito. Nessa constatação reside o maior problema, pois uma peça de merchandising audiovisual deveria constituir um importante fator a ser levado em conta pelo espectador no ato de escolha daquilo que deseja ver. Essa é a razão da existência desse produto. Mas, se a estética deles é tão similar, afinal, como separar os filmes promissores dos desinteressantes?


Trailer de Atividade paranormal inovou ao mostrar reação da plateia ao filme.
Foto: Reprodução

Uma olhada atenta à história desse tipo de anúncio de cinema mostra que o problema não é tão novo assim. O seu conceito surgiu na década de 1910, nos Estados Unidos. As primeiras experiências ocasionais registradas por historiadores cinematográficos ocorreram no começo da década, em Nova York, e normalmente envolviam narrativas seriadas. A primeira exibição registrada de um trailer, de fato, teria ocorrido em 1912, num cinema de Hye Beach, ao final de uma apresentação do seriado semanal The adventures of Kathlyn. O filme terminaria com a protagonista atirada em uma jaula. Na ocasião, o exibidor simplesmente incluiu uma cartela com uma frase: “O que será que aconteceu? Não perca na próxima semana!”.

Ao longo da década, esse tipo de estratégia passou a ser repetido com alguma frequência, mas só em 1919 as chamadas para próximas atrações ganhariam um nome e uma produção constante. Isso ocorreu depois que uma pequena produtora, a National Screen Service, começou a reunir fotografias de produção de filmes, e às vezes pequenos trechos deles (quando os estúdios concordavam em cedê-los), e produzir anúncios com narração e música. Estes eram destinados à exibição no final da sessão (isso explica o título original da atração, pois o verbo trail significa “a seguir”). Aos poucos, esse material promocional começou a ser requisitado por mais salas de cinema. Em 1922, diante do crescimento do empreendimento, a produtora assinou contratos com todos os estúdios importantes de Hollywood e tornou o serviço regular, ampliando a sua distribuição. Somente em 1928, os grandes estúdios (a Warner foi o primeiro) decidiram também realizar tais chamadas.

ESTRUTURA
Já naquela época, como nota Lisa Kernan, a estética da maioria dos trailers era bastante similar. De fato, por terem sido desenvolvidos pela mesma empresa durante alguns anos, eles seguiam estrutura semelhante: trechos das principais cenas do filme, efeitos gráficos (legendas, intertítulos, texto impresso sobre as imagens) e uma frase de efeito no final, sempre procurando capturar o interesse do espectador. A chegada do som inscrito nas películas de 35 mm, ocorrida em 1927, completou a receita básica da fabricação de um trailer com narração em off (quase sempre feita por um narrador onisciente que não é personagem do filme) e música oriunda de bibliotecas de áudio dos estúdios (em geral, canções de produções antigas).


A plateia soube das melhores piadas de Quase famosos bem antes de assistir ao longa.
Foto: Reprodução

Ao longo dos anos 1930, período no qual a tecnologia de edição de imagem e som deu um grande salto de qualidade, os produtores desenvolveram características de estilo que continuam acompanhando essa modalidade audiovisual até hoje: montagem rápida e descontínua, uso abundante de efeitos de edição (muitos planos terminam com o deslocamento lateral da imagem, que some pelos lados, para dar lugar a outro plano, em um fragmento de segundo), efeitos sonoros curtos e com grande crescendo no volume. Os letreiros no final, com informações sobre datas de locais de exibição, frequentemente vêm acompanhados por textos hiperbólicos, recheados de adjetivos (“Maravilhoso! Fantástico!”), verbos no imperativo (“Vá! Veja! Sinta!”) e frases de efeito, tais como “Apertem os cintos” (Homens de preto, 1997) e “Aqui vamos nós de novo” (O retorno de Jedi, 1983).

Esses padrões de estilo não nasceram sem uma razão. Como trailers são muito curtos (a Associação dos Exibidores de Filmes dos Estados Unidos estabelece como regra que cada estúdio só pode lançar uma única peça anual que tenha mais de dois minutos e 30 segundos de duração), os produtores sabiam que tinham pouco tempo para capturar e manter a atenção dos espectadores, a fim de despertar neles a curiosidade. Todas essas características contêm mudanças abruptas no conteúdo visual e sonoro, de forma a estimular o público a dirigir a atenção para a tela.

Essa explicação levou Lisa Kernan a estabelecer uma curiosa analogia entre os trailers e os filmes realizados na primeira década de existência do cinema (1985-1905), período no qual os cineastas não estavam preocupados com a narrativa das obras, mas, sim, em proporcionar choques de percepção no público. Esse tipo de produção, mais parecida com números de circo do que com peças de teatro, foi denominada pelo pesquisador Tom Gunning de “cinema de atrações”, e foi deixando lentamente de existir após 1906 – mas teria, de certo modo, revivido com os trailers.


Apresentação do clássico Branca de Neve contou com a presença de Walt Disney.
Imagem: Reprodução

EXPERIMENTALISMO
De um modo ou de outro, essa estética foi seguida fielmente até o final da década de 1950. A partir daí, a história dos trailers teria entrado em uma fase criativamente mais interessante. Graças à ascensão de uma nova geração de cineastas e cinéfilos afeitos à experimentação livre – a Nouvelle Vague de Jean-Luc Godard e François Truffaut, na França, a New Hollywood de Francis Ford Coppola e Martin Scorsese, nos Estados Unidos –, a estética desse material de divulgação passou a ser continuamente desafiada.

A experiência de Hitchcock com Psicose, mesmo não sendo totalmente inédita (Walt Disney produziu um promocional em que aparecia, ao lado de um conjunto de bonecos, para divulgar Branca de neve e os Sete anões, em 1937), faz parte dessa onda de experimentalismo – e convém não esquecer que o trailer de Psicose dura enormes seis minutos e meio, quase o triplo do normal. Stanley Kubrick, cineasta controlador e que era especialmente amante dessa tipologia, foi outro nome que cometeu ousadias: na chamada para Lolita (1962), diante dos acontecimentos picantes da trama, até mesmo o narrador se pergunta como o estúdio permitiu que o filme fosse feito.

A partir do aparecimento dos primeiros blockbusters, como Tubarão (1975) e Guerra nas estrelas (1977), as produções norte-americanas passaram a visar um público mais jovem, o que acabou com o desejo dos estúdios e cineastas de experimentar ousadias estéticas.


Na divulgação de sua versão de Lolita, romance de Nabokov, o diretor Stanley Kubrick adota ironia, questionando a ausência de censura ao filme pelo estúdio. Foto: Reprodução

O mesmo aconteceu com os trailers: quase sempre tentando levar o máximo de pessoas ao cinema, as chamadas para futuros filmes começaram lentamente a repetir a mesma estrutura, os mesmos efeitos sonoros (é difícil encontrar hoje um deles que não tenha o tradicionalíssimo toque de címbalo – um prato de bateria – como ruído que interliga duas cenas diferentes), as mesmas músicas, já que as trilhas sonoras de Coração valente (1995), Stargate (1994) e Réquiem para um sonho (2000) fornecem acompanhamento dramático constante para, respectivamente, aventuras históricas, ficções científicas e dramas melancólicos.

Ocasionalmente, um lampejo pode ocorrer, como o criativo e barato filme de divulgação de Atividade paranormal (2007), que não mostrava nenhuma cena do longa em si, mas tomadas das reações (em geral, genuinamente apavoradas) de membros da plateia que assistiam ao filme em festivais e exibições-teste – essa ideia foi repetida no trailer do quarto exemplar da franquia, em 2012. Mas essas são exceções. A regra continua a ser a divulgação que conta muito, que desperdiça as melhores piadas (isso aconteceu em Quase famosos, de 2000, quando a brilhante sequência da turbulência no avião, que provoca uma confissão hilariante do baterista da banda protagonista, foi usada à exaustão, o que deixou bastante sem graça a mesma cena na sessão), que repete cacoetes de outros trailers e que, no limite, impede que o espectador consiga selecionar as obras que realmente têm potencial para agradá-lo.

Lisa Kernan admite que essa tipologia se repete muito, mas advoga que essa semelhança estética é muito mais fruto das condições de produção do que do estabelecimento de uma estrutura rígida de organização das informações visuais e sonoras. Acontece que a produção desses anúncios cinematográficos, no mundo inteiro, tem sido terceirizada pelos estúdios e assumida por um número relativamente pequeno de produtoras que, por sua vez, graças ao tempo curto de trabalho e a orçamentos nem sempre generosos (nos EUA, um trailer é atualmente produzido por valores que variam entre 40 e 100 mil dólares), tende a repetir a receita, com medo de arriscar. 

RODRIGO CARREIRO, jornalista, doutor em Comunicação e coordenador do curso de Cinema da UFPE.

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