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Telles Júnior: Centenário de um esquecimento

Artista plástico pernambucano, cujos 100 anos de morte são lembrados agora, foi um dos nomes ilustres da virada do século 19 para o 20 que se perderam entre as tendências que o sucederam

TEXTO Weydson Barros Leal

01 de Maio de 2014

A tela 'Ventania' (1902) colaborou com a sua fama de “intérprete da paisagem nordestina”

A tela 'Ventania' (1902) colaborou com a sua fama de “intérprete da paisagem nordestina”

Imagem Reprodução

O calendário das efemérides está cheio de nomes desimportantes. Alguns, que em séculos passados teriam o peso de uma estátua de bronze, hoje são apenas o pretexto para uma nota de jornal ou nem isso. Assim acontece com mártires civis, santos populares e heróis militares. Muitos ignorados ou simplesmente esquecidos. A maioria, claro, fazendo jus ao esquecimento. Líderes de conflitos como a Guerra dos Mascates, a Revolução Praieira e outros capítulos de nossa história são hoje defuntos anônimos, sem mesmo uma lápide como endereço. Alguns escritores, pintores e poetas gozam do mesmo vazio. Raros batizam uma rua – com muita sorte, uma avenida –, e correm o risco de, no século seguinte, a nova geração renomear o logradouro.

Neste maio de 2014, por exemplo, ocorre o centenário de morte do pintor pernambucano Telles Júnior. Poucos saberiam dizer quem foi o artista, talvez nem mesmo os moradores da rua que tem o seu nome, no Recife. Mas, mesmo na cidade, a desinformação sobre quem foi Joaquim Nabuco ou Telles Júnior é generalizada. Historiadores e curadores de museus – esperamos – não entram nessa contagem. Mas serão sempre poucos.

O caso do pintor Telles Júnior é particular. Ele foi um daqueles artistas que, vivendo a virada do século 19 para o 20, se perderam na poeira das novas tendências ou sucumbiram ao próprio gênio ou à falta deste. No caso, havia talento, gênio jamais. Numa chamada de artistas ilustres de sua época, estaria de ombro com Antonio Parreiras, Aurélio de Figueiredo, Lucílio de Albuquerque, Augusto Luis de Freitas, Agostinho da Motta e Rodolfo Amoedo. Claro que essa não foi a mais longa lista de desconhecidos que o curioso leitor já leu em sua vida, mas, acredite, no começo do século 20 eram todos considerados grandes pintores em suas cidades ou entre os amigos. O tempo, enfim, é a mais pesada pedra no campo do esquecimento.

Jerônimo José Telles Júnior nasceu em 1851, no Recife, onde morreu no dia 1º de maio de 1914. Entre essas duas datas viveu algum tempo no Rio Grande do Sul e depois no Rio de Janeiro, em virtude de transferências profissionais do pai, que era comandante de navio. Aos 18 anos, no Rio de Janeiro, ingressou na Marinha e começou a estudar desenho. Por um breve período frequentou o Liceu de Artes e Oficios da então capital do país. Mas logo voltou ao Recife, onde continuou a estudar pintura e começou a trabalhar no comércio. Também no Recife, ainda foi professor numa certa “Sociedade dos Artistas, Mecânicos e Liberais” e no Liceu de Artes e Ofícios – onde chegou a ser diretor – e, por fim, ingressou na política, sendo eleito deputado estadual uma vez.

O seu interesse pela fotografia, de certa forma ainda uma novidade na época, talvez explique sua pintura excessivamente acadêmica, tendo a representação clássica da natureza – como qualquer pintura de 100 anos antes de sua existência – tomado o traço de sua pouca ou nenhuma invenção. Se comparadas às paisagens de um Cézanne – praticamente seu contemporâneo –, Telles Júnior seria um pintor sem expressão, um dos milhares que foram engolidos pelo olho criador do gênio de Aix-en-Provence.

As suas “especialidades” eram as marinhas e as “paisagens de florestas”, estas últimas válidas para um público com pouca ou nenhuma informação, mas tudo quase sempre distante do mínimo vestígio de cidade ou de seus tipos humanos, o que nos dá a certeza de que o autor não tinha habilidade suficiente para o retrato. Mesmo as suas marinhas, pelas quais era aclamado por resenhistas, tinham o mar apenas como pano de fundo ou coadjuvante menor, preferindo justificar o tema pelo traço bucólico de uma linha de coqueiros. Com relação ao oceano propriamente dito, ou a enfrentá-lo como tema de uma pintura, seria colegial, se comparado a um Gericault ou a um Turner.


O Araguaia no Limeirão e a natureza-morta de 1900 são exemplos do estilo do pintor. Imagem: Reprodução

Pode-se dizer que, no Brasil de Telles Júnior, praticamente toda a pintura realizada em solo nacional estava presa a algum tipo de escola acadêmica ou Classicismo, haja vista a sua premiação num Salão de Arte, no Rio de Janeiro, em 1890. Ainda assim, pintores como o imigrante italiano Eliseu Visconti (1866-1944) ou o paulista Almeida Júnior (1850-1899) estavam à frente do contemporâneo pernambucano. Poderíamos sugerir, em defesa do academicismo de Telles Júnior, a enorme distância e as dificuldades de comunicação do Brasil com a Europa. Mas, de qualquer maneira, em 1900, pintores como Van Gogh, Seurat, Gauguin, Renoir e principalmente Monet já tinham revolucionado havia algum tempo a arte de representar a luz e o visível – e até o invisível ao olho comum.

De todo modo, não há que se retirar o mérito de Telles Júnior como artista que conseguiu um lugar ao sol de sua época. O artista teve grandes admiradores entre críticos e intelectuais importantes. Sobre isso, o crítico Walmir Ayala (1933-1991), ao comentar sobre Telles Júnior, revelou, talvez sem perceber, que também na época do pintor já havia um certo bairrismo ou preconceito regional, pois ele foi elogiosamente reconhecido como “intérprete da paisagem nordestina (...) com a atenção para os detalhes mais rudes da paisagem interiorana”. Quem sabe, em virtude desse curioso exotismo, Telles Júnior participou de diversas exposições em salões de arte do Rio de Janeiro e, em 1891, de uma exposição internacional, em Chicago, nos Estados Unidos.

Uma ressalva em defesa da pintura de Telles Júnior pode ser a formação do artista num período tutelado pelos gostos imperiais. Até os seus 34 anos, auge de sua atividade como pintor, o Neoclassicismo europeu, com defasagem, era o parâmetro de gosto e de ensino nas escolas por onde Telles Júnior passou. Na corte de D. Pedro II, especificamente, o gosto pelas pinturas de temas religiosos ainda tinha um público cativo.

PAISAGEM
Sobre o tema da paisagem, que definitivamente marcou Telles Júnior, talvez a maior influência tenha sido a missão artística francesa no Brasil (1816), cujos resquícios eram fortes quase um século depois, quando obras de Debret e Taunay eram exemplos à altura de Frans Post (1612-1680). Isso não significa que aqueles mestres seriam alcançados – por imitação ou admiração – por artistas brasileiros como Telles Júnior. A escola da qual fazia parte o pernambucano, patrocinada por D. Pedro II, visava uma arte oficial tentando a inserção do país em um mundo moderno. Infelizmente, na arte, esse mundo estava muito à sua frente.

REGIONALISTA
Admirar ou defender hoje a pintura de Telles Júnior seria um anacronismo estético. Mas, em 1905, isso era compreensível, se assinando a sua defesa estivesse o escritor Oliveira Lima. Não sabemos se pela conterraneidade – o grande escritor também era pernambucano do Recife – ou por não se tratar de um crítico de arte especializado, os comentários elogiosos de Oliveira Lima não passaram despercebidos por um especialista de olhar aguçado.

Pouco depois do comentário de Lima ser publicado, Gonzaga-Duque – provavelmente o precursor da crítica de arte profissional no Brasil, autor do livro Arte brasileira (primeira publicação especializada em arte no país) – fez os seguintes comentários: “Do paisagista pernambucano Telles Júnior, de quem se ocupou nesta revista, há um ano, o Sr. Oliveira Lima, encontramos um quadrinho que se nos afigura insuficiente para constatar o mérito que esse escritor lhe deu. O seu acabamento acusa maneirismo e, nos detalhes, vemos persistências que denotam dificuldades”.


Imagem: Reprodução

A partir daí, até a sua morte no Recife, em 1914, Telles Júnior produziu pouco, sendo gradativamente esquecido nos principais salões de arte. Uma lembrança do seu nome, quase como um renascimento para sua reputação, deu-se numa citação de outro pernambucano ilustre – o maior dos pensadores brasileiros – Gilberto Freyre. É claro que, como historiador e sociólogo da cultura brasileira e de suas especificidades regionais, Gilberto encontrou em seu antigo professor de desenho um nome importante a ser incluído no famoso Manifesto Regionalista, publicado em 1926. Citado ao lado de outros nordestinos indiscutivelmente geniais, como José de Alencar, Augusto dos Anjos e Joaquim Nabuco, o então já falecido Telles Júnior foi lembrado como “pintor da paisagem tropical de Pernambuco com suas palmeiras e coqueiros”, ilustrando a cultura e o espírito brasileiros. Mas Freyre não era um crítico de arte, e, embora seu gênio e inteligência o autorizassem a qualquer citação, o elogio tinha muito mais o intuito de conformação e embasamento de um argumento sociológico para seu Manifesto do que propriamente de uma análise estética da pintura moderna que partisse de Telles Júnior.

Lembremos que, na data dessa publicação, a arte moderna e a literatura brasileiras haviam passado pela revolução da Semana de Arte de 1922, e entre os nomes dessa lista freyriana, poucos representavam um princípio de ruptura com a arte bem-comportada, acadêmica, no sentido do que era conhecido e reconhecível como arte até ali.

O próprio Manifesto Regionalista era uma reação a um tipo de internacionalização da arte e dos artistas brasileiros, o que hoje seria uma tentativa de reserva de mercado no mundo das bienais e feiras de arte internacionais. De qualquer maneira, todos aqueles artistas citados por Freyre, ou sua maioria, haviam sido formados sob a estética do século anterior, e estavam distantes do olho do furacão que revolucionara a Europa antes da Primeira Guerra. Nesse quesito, e naquele momento, os dois únicos nomes da pintura pernambucana que haviam compreendido a chegada de uma nova arte e nela se desenvolveram com linguagem forte e original foram Vicente do Rêgo Monteiro e Cícero Dias, e por isso, em 1926, os dois já haviam deixado o Recife para estudos e estadias no Rio de Janeiro e em Paris, mesmo com idas e vindas.

A argumentação de alguns críticos de que a insistência de Telles Júnior como pintor de paisagens nos serviria como registro de uma época não se sustenta. Por isso, a comparação do pintor pernambucano com grandes retratistas do Brasil colonial, como Frans Post, por exemplo, é quase absurda. Post realizava uma crônica pictórica a serviço de um governo (Holanda) ou como “cronista particular” do governador Maurício de Nassau em suas viagens pelo território conquistado. No que concerne à pintura nessa comparação, temos uma distância de mais de dois séculos como justificação dos registros de Post e a enorme superioridade técnica do holandês – para não citar toda a tradição da escola holandesa de pintura – que não cabe aqui questionar.

Um dado final, para situar a pintura de Telles Júnior no mapa do seu tempo, é o fato de que entre 1905 e 1910, enquanto o nosso artista pintava florestas e marinhas, na França, Picasso já pintara Les demoiselles d’Avignon (1907) e, junto com Braque, liquidaria a fatura do Cubismo até 1914, ano da morte de Telles Júnior.

Imagino Telles Júnior numa tarde de abril de 1914, na sala de sua casa, no Recife. Ele está sentado no camafeu de jacarandá com recostos de palhinha, a olhar na parede uma de suas pinturas, poucos dias antes de sua morte. Veste um impecável terno negro – colete de cetim brocado. As últimas luzes de abril acentuam os verdes e os ocres daquela paisagem. Ele fecha os olhos e pensa nas cidades onde morou. Lembra o Rio de Janeiro, seu pai levando-o para as aulas no Liceu, e adormece. Em um de seus últimos sonhos, imagina que irá morrer em breve e duvida de que dali a 100 anos seja lembrado de alguma maneira. Assim, a autocrítica teria sido um de seus últimos talentos, e talvez por isso lembremos com algum carinho do pintor Telles Júnior. 

WEYDSON BARROS LEAL, escritor, dramaturgo e crítico de arte.

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