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Terra do Fogo: Perto do fim do mundo

Conta-se que o nome desse arquipélago, localizado na extremidade sul da América do Sul, originou-se nas imensas fogueiras acesas pelos nativos para amenizar o frio cortante

TEXTO E FOTOS MONA LISA DOURADO

01 de Março de 2014

Ao entrar nesta avenida, no braço noroeste do Canal Beagle, visitante avista imensos blocos de geleiras

Ao entrar nesta avenida, no braço noroeste do Canal Beagle, visitante avista imensos blocos de geleiras

Foto Mona Lisa Dourado

É amanhã o dia 1º de novembro de 1520. Depois de navegar por quase um ano em busca de uma rota alternativa para o Oriente, o capitão português Fernão de Magalhães finalmente encontra a passagem que liga o Atlântico ao novo oceano de águas tranquilas, que ele batizaria de Pacífico. Prova incontestável do formato esférico do planeta, a descoberta não seria a única a mudar radicalmente os contornos do mapa-múndi. Na margem sul do estreito, que anos mais tarde receberia o seu nome, Magalhães e seus marinheiros são arrebatados por uma imagem mística. Milhares de fogueiras ardiam sobre um pedaço ainda desconhecido das Américas. Nascia ali, aos olhos europeus, a Terra do Fogo.

Desde então, o grande arquipélago que demarca o fim do continente sul-americano atrai desbravadores de todas as latitudes. Mas Karukinka (“nossa terra”, como os nativos a chamavam) não se entrega fácil. É destino para persistentes. Basta dizer que as chamas que hipnotizaram os primeiros navegadores eram o recurso utilizado pelos povos originários, Yámanas e Selknams, para se proteger do rigoroso frio austral. Foram essas mesmas condições extremas do clima, aliadas à localização remota e à geografia entrecortada dos seus canais, que dificultaram o acesso de exploradores. Ajudaram, em contrapartida, a resguardar as riquezas desse território selvagem por mais de três séculos.

Devido também à resistência da população indígena, a região foi uma das últimas domadas pelo homem branco no hemisfério. Apenas em 1881 demarcou-se a divisão do território (de dimensões semelhantes à da Irlanda) entre Argentina e Chile. O importante patrimônio histórico-cultural já seria suficiente para justificar a longa viagem até lá. Generosa, a Terra do Fogo oferece mais. Paisagens policromadas congregam o azul intenso de geleiras milenares com o verde de bosques intocados e o ocre de estepes intermináveis, atravessadas por rios e lagos prateados. A povoar terras e mares do seu entorno está uma fauna diversificada: desde pinguins, baleias e elefantes-marinhos a guanacos, raposas e pica-paus.

Quem decide se aventurar por essas longínquas paragens tem a promessa de integração com todos os elementos da natureza. Pelo mar, o visitante pode refazer a rota dos descobridores; por terra, seguir os passos dos colonizadores; e, pelo ar, incorporar o conquistador moderno em avionetas bimotoras. O fogo não está só no nome da ilha, mas se reflete nas cores quentes do céu.


Paisagem de pampa predomina no interior

PELO MAR
Sob esse horizonte alaranjado, o barco Stella Australis parte da cidade chilena de Punta Arenas, às margens do Estreito de Magalhães, rumo ao Canal Beagle. O caminho natural entre fiordes e geleiras foi nomeado pelo capitão inglês Robert Fitz Roy em alusão ao veleiro HMS Beagle. Entre 1826 e 1836, a embarcação participou de dois dos mais importantes mapeamentos hidrográficos feitos na região.

Na segunda viagem (1831-1836), que circum-navegou o globo durante cinco anos, estava outro ilustre passageiro: o então jovem e desconhecido naturalista Charles Darwin. Dessa expedição, foi elaborada parte do conteúdo da sua teoria sobre a origem das espécies, que o tornaria célebre 23 anos depois.

Conhecer a Terra do Fogo a partir da perspectiva desses pioneiros é aventura que hoje pode ser feita com conforto e segurança impensáveis no século 16. Já a emoção permanece a mesma. Isso porque a região continua quase tão virgem quanto no passado. Com a diferença fundamental de que os indígenas foram quase todos exterminados.

Parte dessa história o turista conhece em palestras, exibição de documentários e bate-papo com especialistas a bordo, uma vez que o conhecimento é tão valorizado nesse cruzeiro de expedição quanto a paisagem que se vê lá fora.

Ponto alto do roteiro são os desembarques. O primeiro permite observar o azul translúcido do Glaciar Marinelli, além da vegetação de lengas, coigues e ñires típica dos bosques austrais. Na Baía Aisworth, elefantes-marinhos aproveitam o banho de sol, alheios ao vaivém de curiosos. Ao contrário da ruidosa colônia de cormorões e gaivotas austrais das Ilhotas Tuckers, que recebem os visitantes com algazarra. Enquanto isso, os simpáticos pinguins-de-magalhães posam para as fotos.


Os Yámanas viveram oito mil anos aqui, até o extermínio

O Glaciar Pía é a próxima parada. O desprendimento de blocos da geleira - que “ribombam como o canhoneio de um navio de guerra pelos canais”, teria dito Darwin - paralisa o visitante. Só não provocam mais alvoroço que a entrada na Avenida dos Glaciares, no braço noroeste do Canal Beagle. Desfilam numa bela sequência numerosos ventisqueiros, que avançam em direção ao verde escuro das águas frias, vindos do cume da Cordilheira Darwin.

A navegação a latitudes cada vez mais altas rumo ao sul segue em busca do último vestígio de terra do continente. Ventos inclementes e mar agitado denunciam a proximidade com o Cabo de Hornos. Dali em diante, abre-se o temido Mar de Drake, que separa a Terra do Fogo da Antártida. A passagem transoceânica foi descoberta em 1616 pelos holandeses.

Antes e depois de Willem Schouten e Jacob Le Maire terem êxito na empreitada, pelo menos 10 mil homens pereceram em mais de 800 naufrágios registrados nas águas revoltas do Cabo de Hornos. Em memória deles, a ilha abriga um monumento com a escultura de um albatroz em voo. Segundo a lenda, a ave encarna a alma dos marinheiros mortos.

Para visitar esse marco histórico-geográfico, hoje território do Chile, é preciso enfrentar uma escadaria de 160 degraus. Viajantes e aventureiros marcam a passagem por ali deixando bandeiras e bonés de seus lugares de origem. Em troca, levam suvenires da lojinha mais austral do continente. Quem administra o “negócio” é o faroleiro que, por um período de um ano, chama o Cabo de Hornos de lar. Alguns levam a família para amenizar o isolamento dos mares do sul.


O contato com a natureza preservada é uma das razões para se ir ao “fim do mundo”

Nem sempre as ilhas do extremo da Terra do Fogo foram desabitadas. É o que se descobre na Baía Wulaia, onde Yámanas viveram durante oito mil anos até as primeiras tentativas de colonização. Quem admira a placidez do lugar não imagina os episódios épicos ocorridos ali.

Na sua primeira passagem pela Terra do Fogo, Fitz Roy levou quatro índios à Inglaterra, com a intenção de “civilizá-los”. Devolveu três deles (um morreu na Europa) na viagem de regresso, para que influenciassem os demais a autorizarem a presença de catequizadores anglicanos. A missão revelou-se um fracasso, quando, anos mais tarde, constatou-se que os índios estavam readaptados à vida selvagem e ainda mais avessos aos intuitos civilizatórios. Entre os eventos sangrentos desse período está a matança em Wulaia, de sete dos oito tripulantes de uma fragata missionária enviada das Ilhas Malvinas. Talvez a grande falha dos ingleses tenha sido subestimar o poder de resistência de homens e mulheres que eram capazes de enfrentar, sem roupa, temperaturas negativas, transportar-se em canoas por milhares de quilômetros e caçar a nado lobos-marinhos em mares gelados.

O fato é que os Yámanas resistiram, mas não por muito tempo. O inevitável contato com o “homem branco”, que começou a se instalar na Terra do Fogo a partir de 1869, dizimou a população indígena. De três mil pessoas estimadas no século 19, resta apenas uma descendente pura da etnia. A “abuela” Cristina Calderón, 85 anos, também é a única a falar a língua originária. Por isso, foi declarada em 2003 Tesouro Humano Vivo pelo Conselho Nacional da Cultura e das Artes da Unesco.

Hoje, a derradeira Yámana vive na Villa Ukika, um dos atrativos da Ilha Navarino. Ali, Cristina e descendentes mestiços dos nativos dedicam-se à pesca e ao artesanato, com destaque às peças em junco e madeira.


Protegido por um bosque, o lugar sugere silêncio e reverência

A Vila Yámana está a apenas dois quilômetros de Puerto Williams, o último povoado do continente. Fundado em 1953, para firmar a soberania chilena no Canal Beagle, o lugar rivaliza com a cidade argentina de Ushuaia pelo título de “fim do mundo”. Uma conferida no mapa não deixa dúvidas de que Puerto Williams está mais ao sul.

A natureza prodigiosa é a principal razão para ir ao “fim do mundo”. Os mais dispostos podem encarar o Circuito Dientes de Navarino, um trekking pelas montanhas pontiagudas de granito, em meio a lagoas congeladas e ao ecossistema único dos bosques subantárticos. Menos puxado é o passeio ao Parque Etnobotânico Omora, laboratório natural para milhares de espécies vegetais.

A melhor síntese sobre o povoamento da Terra do Fogo se encontra no Museu Antropológico Martín Gusinde, no centro de Puerto Williams. Moderno e multimídia, o espaço equivale aos grandes equipamentos do gênero de qualquer metrópole. Sob o teto que reproduz o céu estrelado dos mares austrais, o museu privilegia a interatividade, ao narrar a trajetória de índios e colonizadores da região. A vasta coleção etnográfica inclui mapas, objetos, fotografias e recursos audiovisuais, entre eles testemunhos e registros do idioma Yámana.

A viagem no tempo se completa em frente ao museu, onde está a Casa Stirling. De arquitetura modesta, a habitação poderia passar despercebida, não fosse sua importância antropológica. É a mais antiga da região, enviada da Inglaterra a Ushuaia para abrigar Thomas Bridges, o primeiro missionário anglicano a estabelecer-se definitivamente na Terra do Fogo, em 1871. Depois de ser desarmada e reconstruída outras duas vezes, chegou a Puerto Williams em 2004. Hoje, cumpre a missão de enriquecer a experiência dos visitantes.


Muitas das fazendas locais foram transformadas em pousadas

POR TERRA
Depois de cruzar o Seno Almirantazgo (fiorde entre o arquipélago e o continente), a aventura na Terra do Fogo segue em veículos 4x4 pela Ilha Grande. Refazemos os passos dos colonizadores, que só começaram a chegar no fim do século 19. O convite é para abrir a janela, sentir o vento que ricocheteia no rosto e admirar a vasta planície dourada. No interior da Terra do Fogo, o cenário muda radicalmente. Bosques úmidos dão lugar à imensidão dos pampas, de vegetação rasteira e lagos habitados por cisnes de pescoço negro, flamingos e patos. Aqui e ali, às margens de rios entrecortados, rebanhos de ovelhas são guiados por gauchos.

Desde o descobrimento geográfico, no século 16, essa parte do território fueguino havia permanecido intacta. Até a Armada do Chile iniciar o mapeamento das terras austrais e encontrar jazidas de ouro, que logo despertaram a cobiça do explorador. A partir de 1882, começaram a chegar mineiros dos mais remotos países da Europa, especialmente da Croácia.

Testemunha desse período é a Draga Aurífera Russfin. Restos da maquinaria utilizada na extração industrial do ouro também podem ser vistos na área do Cordón Baquedano, próximo a Porvenir. A capital da província da Terra do Fogo, fundada em 1894, surgiu no apogeu da exploração aurífera e guarda resquícios dessa opulência, muitos deles reunidos no Museu Fernando Cordero Rusque. Um passeio pela cidade ainda permite conhecer a casa onde funcionou o primeiro cinema do Chile.

Embora tenha provocado mudanças sócioeconômicas irreversíveis, a extração do ouro durou pouco. Logo no início do século 20, percebeu-se que o valor do minério não justificava os investimentos necessários para extraí-lo. Além das minas abandonadas, a exploração deixou um triste legado: a matança de índios Selknam, caçadores terrestres que povoavam a Ilha Grande há mais de 10 mil anos. O genocídio seria concluído até a extinção da etnia com a nova atividade econômica estabelecida na região. Às custas de quase quatro mil vidas, a criação de gado trouxe desenvolvimento à Terra do Fogo e a consolidação de sua atual identidade.


Pinguins estão entre a variedade de aves que habitam o arquipélago

Muitas das grandes fazendas desse período podem ser observadas pelas estepes fueguinas, caso das Estâncias Vicuña e Caleta Josefina. Já na Estância Villa Cameron, que abriga uma pousada homônima, é possível se hospedar e acompanhar as atividades de pastoreio, tosa das ovelhas e produção de lã, com direito a chimarrão, cordeiro assado e cavalgada. Às margens do Rio Grande, o lugar também atrai os que praticam pesca esportiva.

Seguindo o curso de seus rios sinuosos, a Terra do Fogo ainda revela recantos, até recentemente, só alcançados em longas viagens a cavalo. Protegido pelo bosque, desponta o Lago Deseado. Os desbravadores agora contam com uma estrada de terra, aberta em 2005. O caminho encurtou o tempo, mas não diminuiu o impacto de quem chega a esse lugar de águas prateadas e ar aboslutamente puro, onde as horas parecem amansar.

O silêncio é quebrado pelo ruído de caiquenes ou pica-paus que bicam os janelões da pousada à beira do lago. A partir deles, pode-se admirar a beleza agreste resguardada dos humores do clima, que varia de uma paisagem ensolarada a outra, coberta de neve.

Passeios de caiaque, caminhadas e pesca fazem parte da programação outdoor, com destaque às incursões ao cristalino Río Azopardo ou ao caudaloso Lago Fagnano, de onde parte um caminho recém-construído rumo à Caleta María. A natureza aqui protagoniza outro de seus feitos, ao exibir na praia uma surpreendente colônia de pinguins-rei, naturais da Antártida.

PELO AR
Ao contrário dos pioneiros, os atuais conquistadores da Terra do Fogo podem ter a exata dimensão do arquipélago a partir do alto. Sobrevoos panorâmicos decolam de Punta Arenas e Puerto Williams em direção à Ilha Grande, numa aula de geografia 3D. A avioneta passa rente a encostas escaparpadas, mergulha em direção aos mantos de gelo glacial e serpenteia pelos canais. Bela maneira de começar ou terminar a viagem por esse território de extremos. 

MONA LISA DOURADO, jornalista, fotógrafa amadora e viajante por convicção.

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