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Leminski: Imagens de um homem de texto

Exposição composta de documentos, fotografias e objetos procura abarcar as múltiplas atividades do escritor, com destaque para o romance 'Catatau'

TEXTO Luciana Veras

01 de Março de 2014

Foto Sal Marinho/Divulgação

O sobrenome vem da Polônia, mas ele nasceu em Curitiba e lá escreveu, traduziu, compôs, inventou poemas, criou neologismos na prosa, treinou caratê, foi faixa preta de judô, pai, parceiro musical, professor e crítico. Era muitos num só e talvez por isso tenha partido cedo, em junho de 1989, aos 44 anos. Múltiplo Leminski, exposição que chega à Torre Malakoff no dia 29 deste março, ostenta um nome fidedigno às descrições de Paulo Leminski e de sua obra tão refratária a rótulos ou tentativas de enquadramento. Após amealhar 200 mil visitantes entre outubro de 2012 e junho de 2013 no Museu Oscar Niemeyer, na capital paranaense, e outros 130 mil no Ecomuseu de Itaipu, em Foz do Iguaçu, a mostra sai completa do Museu de Arte Contemporânea de Goiânia para o antigo observatório astronômico sediado no Bairro do Recife, porém com um enfoque especial para o público pernambucano.

São estes os espaços de Múltiplo Leminski: linha da vida e obra; poesia; música; prosa; Catatau; tradução; biografia; HQs; haikaista e judoca; publicidade; jornalista; professor; escritório; e biblioteca. A diferença na exposição, aberta à visitação até 30 de maio, é o destaque para Catatau, um “romance-ideia”, nas palavras do próprio autor, escrito por Leminski em 1975 e protagonizado por um René Descartes que teria vindo ao Brasil na comitiva de Maurício de Nassau, nobre a serviço da Companhia das Índias Ocidentais que se torna um dos expoentes da invasão holandesa a Pernambuco (entre 1630 e 1654). Descartes nunca esteve em Olinda, a Vrijburg, “cidade livre” ocupada pelos batavos; contudo, para Leminski, ele não apenas cá viveu, como, sob a alcunha latinizada de Renatus Cartesius, apreciou a flora, admirou-se com a fauna e provou uma “erva de negros” que libertou sua consciência.


Influência da cultura japonesa na sua obra, sobretudo pela criação de haicais, está presente na mostra. Foto: Sal Marinho/Divulgação

Em Descordenadas artesianas – um livro e sua história, 23 anos depois, texto acrescido à segunda edição da obra, publicada em Porto Alegre no mesmo ano de sua morte, Leminski diz que “a multiplicidade de leituras do Catatau já traz inscrita na própria multiplicidade de sentidos de que é portador seu próprio nome, uma das palavras mais polissêmicas do idioma”. Ele acrescenta, já em outro apêndice, intitulado Quinze pontos nos IIs: “No Catatau, a expectativa é sempre frustrada. O leitor jamais sabe o que deve esperar: rompe-se a lógica e as passagens de frase para frase são regidas por leis outras que não as normas da sintaxe discursiva ‘normal’. Existe literalmente um abismo de frase para frase, abismo esse que o leitor deve transpor como puder (como na TV, entre ponto e ponto)”. Catatau, em suma, é uma provável síntese do que há de mais complexo, e repleto de significados, na literatura de Leminski.

“É um livro emblemático. Queremos dar um grande destaque justamente por essa relação com a cidade e com a própria localização da mostra. Vamos marcar isso bem na montagem”, resume Aurea Leminski, uma das curadoras, coordenadora geral da itinerância da exposição e filha do escritor. Sua mãe, a poetisa Alice Ruiz, e a caçula, a cantora e compositora Estrela, dividem com ela a curadoria de Múltiplo Leminski. “Calculamos em torno de mil peças, entre documentos originais e peças de ambientação. Tem papéis, guardanapos, fotografias, equipamentos multimídia, projetores, monitores, vitrines e painéis, tudo para criar ambientes muito diferentes. Afinal, estamos falando das várias facetas do Leminski. Podemos brincar de encontrar uma identidade própria para apresentar a obra dele”, acrescenta Aurea.

Pode-se tecer um paralelo entre a amplitude de leituras sobre o homem e seu trabalho, que é a razão de ser de Múltiplo Leminski, e Catatau – cuja “estripulia final”, segundo o autor, “levou nove anos se fazendo, pólipo, politropo, aberração, inchando, proliferando, intumescendo, fermentando, esbanjando-se em bizarrias excêntricas até os últimos limites lógicos e sintáticos do lúdico e do travesti, máscara Nô, maquilagem do caboclo-kabuki, estados caógenos, crepusculares na fronteira entre o inteligível e o enigmático provável, um tratado de Medicina Legal da lógica e da linguagem, museu de cera, um Circo dos Horrores linguísticos”.


Os variados ambientes procuram ressaltar as diferentes instâncias da obra do escritor, do pop ao erudito. Foto: Sal Marinho/Divulgação

TODOS OS LADOS
A exposição se assemelha a um periscópio para se observar nuances extremas, variadas e intensas, com o diferencial de que será possível ir além do olhar e assim interagir. “A ideia é mostrar todos os lados do Leminski. Há aqueles nem tão conhecidos, como o publicitário, o tradutor e o músico. Tem muita gente que conhece suas músicas sem saber que são criações dele. Queremos abranger todas as áreas em que ele atuou. Como era muito versátil, ia desde a arte marginal, de rua, com grafite e cultura pop, até o rigor do erudito, do conhecimento dos clássicos. Ele transitava dentro de tudo. Se um jovem torce o nariz para um lado mais erudito, com certeza vai se identificar com a poesia rápida, que tem tudo a ver com as redes sociais, por exemplo”, ilustra Aurea.

Tal variedade de linguagens, tão inerente a Catatau e a outras obras dele, propiciará uma avalanche de Paulo Leminski ao visitante. Dessa forma, qualquer um poderá cotejar o poeta que adorava haicais com o biógrafo de Cruz e Sousa e Bashô ou ainda com o fã de James Joyce, Samuel Beckett e John Fante, que, de tanto gostar dos originais, se aventurou pela tradução de modo a garantir, não apenas para si, uma fruição mais acurada dos autores que admirava. “Ele acabou virando poliglota porque queria ler os clássicos e se incomodava muito com a tradução, pois era sempre a tradução da tradução. Leminski se dedicou muito a isso, a ser extremamente fiel aos originais e virou um grande estudioso de outros autores. Para se ter uma ideia, ele aprendeu latim quando decidiu traduzir Satiricon, de Petrônio, um livro mais antigo e extremamente erótico, uma característica que as traduções davam uma amenizada. Ele queria traduzir sem deturpar a realidade da obra”, conta a filha e curadora.


Foto: Sal Marinho/Divulgação

As “mil capacidades que ele tinha para lidar com a linguagem”, nas palavras dela, são, portanto, esteio e norte de Múltiplo Leminski. Sua relação com a arte oriental, suas preferências estilísticas, os livros que colecionava, seu processo criativo, suas publicações voltadas para os guris (Guerra dentro da gente e A lua foi ao cinema) e ainda sua produção jornalística interligam-se na ambientação e cenografia propostas pelo designer Miguel Paladino. Superlativos são melindrosos, mas o fato é que essa é a maior exposição sobre Paulo Leminski já idealizada, montada e apresentada. “Em 2009, aconteceram duas mostras em São Paulo, uma no Itaú Cultural e outra no Sesc Consolação. Minha mãe não foi a curadora, mas foi consultora da curadoria. Isso já foi um primeiro passo para resgatar o legado do Leminski, pois começou a mexer com todo esse acervo. Essas exposições, no entanto, eram mais focadas na produção do poeta, escritor, músico. Quando chamaram a Alice em Curitiba, ofereceram a ela a maior sala do Museu Oscar Niemeyer, com 1,7 mil metros quadrados de área expositiva. Parecia ser um problema, mas aí é que foi a grande virada: pudemos pensar em uma exposição para resgatar a vida e a obra, para fazer um pout-pourri de tudo e para aproveitar a área extensa e colocar todas as facetas dele. Até então, nenhum artista da palavra tinha exposto nessa sala mais nobre. O desafio era transformar a palavra e a música em algo a ser visto e absorvido pelas pessoas”, relembra Aurea.

É inegável que a compilação de documentos, objetos e raridades de uma figura há muito ausente e o ato de revirar memórias de um cotidiano familiar tendem a uma catarse anunciada. Dez anos mais velha do que Estrela, e a segunda filha do casal (Miguel, o primogênito de Paulo e Alice, faleceu ainda criança, vitimado por leucemia), Aurea reconhece o aspecto emocional do envolvimento das três mulheres: “Juro que, se isso tivesse acontecido há 20 anos, ia ser mais difícil transformar a dor, a saudade e a falta em algo criativo. Mas é mesmo algo catalisador, que nos alimenta e nos faz cada vez mais unidas. Creio que aconteceu uma coisa inversa com o que aconteceria antes. Lidando com uma carga emocional muito forte, aprendemos a ter um distanciamento, aprendemos a perdoar e a ser bastante pragmáticas umas com a outras. Quando fazemos as visitas guiadas, há um cansaço que não é só o físico, o mental, o intelectual, mas o emocional por estar lidando com as formas todas, por estarmos mais próximas dele”.


A obra terá destaque no Recife pelas referências geográfica e histórica do romance, que imagina a vinda de um certo Descartes ao Pernambuco holandês.
Foto: Sal Marinho/Divulgação

A família Leminski entende que um espólio artístico como o do cidadão que se orgulhava em ser metade polaco, metade índio e português nunca deveria ficar restrito a coleções, bibliotecas ou acervos particulares. “A exposição nos propicia um jeito de estar perto dele e de fazer uma coisa bacana, que é disponibilizar para todo mundo esse legado que acabamos herdando. As pessoas, assim como nós, ficam superentusiasmadas e motivadas”, afirma. Por acaso, Múltiplo Leminski ocorre em concomitância com a reedição da obra literária pela Companhia das Letras, o que aumenta a oferta para leitores, aficionados e afins. “O curioso é que vêm acontecendo juntas, mas não dentro de uma ação que foi pensada em conjunto. Sabíamos que a obra poética dele tinha que ser relançada. Passamos um bom tempo vendo a possibilidade de reunir tudo num volume só, pois tinha livros com uma editora e outros espalhados por aí, então foram anos para desatar esse nó e unir tudo. E depois veio a exposição e tudo caminhou para isso”, situa Aurea Leminski.

Agraciada com recursos do programa Petrobras Cultural, a mostra circulou em Goiânia e aporta no Recife por exigência do edital, que prevê a itinerância por várias regiões do país. De Pernambuco, migra para a Bahia, já sob patrocínio da Caixa Econômica Federal. Antes, entretanto, compõem sua estada na Torre Malakoff palestras, oficinas, uma mostra audiovisual (em que será exibida uma versão de Catatau dirigida por Cao Guimarães e protagonizada por João Miguel) e o show Essa noite vai ter sol, comandado por Estrela Ruiz. “Ela vai sempre com a banda e convida artistas que foram parceiros dele. Em Curitiba, por exemplo, foi o Arnaldo Antunes, que foi amigo pessoal e gravou composições do Leminski. Para o Recife, estamos estudando ainda, mas vai ser uma noite de festa e grande celebração”, adianta a curadora e coordenadora geral. Se o verbete catatau designa ainda “zoada”, “discussão”, como ensina Paulo Leminski, nada mais adequado, então. 

LUCIANA VERAS, repórter especial da revista Continente.

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