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Boris Schnaiderman: Um tradutor desmedido

Nascido em 1917, ano da Revolução Russa, Boris Schnaiderman alçou a tradução do idioma do amadorismo ao profissionalismo. Aos 96 anos, radicado em São Paulo, o tradutor mantém o perfeccionismo

TEXTO E FOTOS JOSIAS TEÓFILO

01 de Fevereiro de 2014

Boris Schnaiderman

Boris Schnaiderman

Foto Josias Teófilo

A caminho de completar 100 anos, Boris Schnaiderman mantém a firmeza intelectual e a precisão nas palavras, além do profundo entusiasmo pela tradução, atividade que o ocupou durante décadas, tornando-se a principal referência na tradução dos autores russos no Brasil.

Nas palavras de Irineu Franco Perpétuo (que recentemente publicou, pela Editora 34, tradução de Boris para o livro Memórias de um caçador, de Ivan Turguêniev): “Ele é o pai fundador da escola moderna da tradução de literatura russa no Brasil. Num tempo em que as distâncias eram maiores, e que ambos os países viviam regimes ditatoriais, foi fundamental ter um mediador com sua cultura enciclopédica, paixão infatigável, gosto amplo e rigor científico. Graças a ele, demos um salto qualitativo decisivo: do diletantismo disperso ao profissionalismo sistemático. E, graças a seus ensinamentos, essa mudança de paradigma agora parece irreversível. Se hoje a literatura russa ocupa um lugar especial na cultura brasileira, isso é devido não apenas à qualidade intrínseca da obra, mas ao tipo altamente qualificado de defesa e difusão que ela vem recebendo de Boris e seus seguidores”.

O tradutor Paulo Bezerra, autor da tradução de Crime e castigo, publicada também pela 34, refere-se a Boris como “herói fundador no campo da literatura russa”. Mas Schnaiderman, para além das suas realizações e méritos, tomou um vulto mítico, talvez por sua fascinante história.

Este senhor simpático, com a voz solene que parece pesar cada palavra, nasceu em 1917, ano da Revolução Russa, na cidade de Uman, na Ucrânia, e logo foi morar em Odessa. Lá, aos 8 anos de idade, viu ser registrada uma das cenas mais famosas do cinema: a da escadaria de Odessa, do filme O encouraçado Potemkin, de Serguei Eiseinstein. É que ele morava em frente à escadaria, e costumava brincar livremente no local onde foi filmada a cena ontológica.

Em 1925, imigrou para o Brasil. “Naquela época, quem queria emigrar não tinha muita escolha. Não era fácil conseguir um visto de entrada. Nós conseguimos porque um tio nosso já tinha vindo a São Paulo, estava trabalhando aqui. Meu pai queria sair da Rússia, era comerciante, não se adaptava ao sistema comunista, mas era estranho, porque ele era muito bem-relacionado e nós saímos legalmente, o que era muito raro”, relata Boris.

Chegando aqui, teve a oportunidade de assistir no cinema a O encouraçado Potemkin, cuja filmagem ele havia presenciado. Formou-se engenheiro agrônomo em 1940 e, na Segunda Guerra Mundial, lutou ao lado do Brasil na Itália, pela Força Expedicionária Brasileira; perdeu vários companheiros e viu a morte de perto, quando o exército americano atacou seu agrupamento por engano. Essa experiência inspirou sua obra de ficção Guerra em surdina (Cosac Naify), resultado de uma elaboração de 16 anos sobre os traumas da guerra.

APURO E AUTONOMIA
Em 1943, ofereceu a várias editoras brasileiras uma tradução diretamente do russo do romance Os irmãos Karamazov, que ele nunca tinha lido. “Se tivesse, não aceitaria de jeito nenhum”, diz ele. Porém, ele atribui um papel importante dessa tradução na sua história: “Traduzir Os irmãos Karamazov foi uma revelação. Eu era novato, não em termos de idade, mas em termos de conhecimento. E, no entanto, foi um acontecimento na minha vida. Eu acabei quase decorando o romance”.

Ainda hoje, de tempos em tempos, é possível encontrar essa edição em sebos. Boris, entretanto, a renega. Usou o pseudônimo Solomonov, que é o seu nome patronímico, nessa e em outras traduções, até se sentir seguro. Em 1960, foi o primeiro professor de língua e literatura russa da USP, na qual ficou até 1979, e traduziu escritores como Doistoévski, Tolstói, Tchekhov, Gorki, Pasternak, poetas como Pushkin, Maiakovski.

Suas traduções ficaram conhecidas pelo apuro e pela autonomia. Na época da ditadura militar brasileira, Schnaiderman chegou a ser preso em sala de aula por sua aproximação com a cultura soviética. Ele esteve na URSS em 1965, 1972 e 1977, mas deplorava o realismo socialista, estética oficial soviética que impunha padrões para todas as manifestações artísticas. Para Boris, “o realismo socialista foi uma deformação total. Querer que a literatura se encaixe em normas ético-políticas é um absurdo”. Entretanto, ele simpatizava com o comunismo, o que hoje vê como uma contradição: “Era uma contradição completa, eu não aceitava o realismo socialista, mas era a favor do comunismo”.

Escritores foram perseguidos por não se adequarem ao realismo socialista, mas, para Boris, a grande literatura subsistiu, com os autores que escreviam, mas não publicavam. O caso mais curioso foi o de Bulgákov, autor de O mestre e a margarida: “Bulgákov é um caso muito estranho, de alucinação mesmo. Ele foi tão atacado, que, no final da vida, queria fazer realismo socialista, queria exaltar Stalin. É a identificação da vítima com o carrasco. E foi um grande escritor que passou anos e anos sem poder publicar nada”.

A larga experiência de tradução de Boris Schnaiderman foi resumida num livro, Tradução, ato desmedido, publicado pela editora Perpectiva na sua famosa coleção Debates. No livro, ele trata da importância da autocrítica constante na tradução – Boris, não raro, revisa suas traduções antigas, quando da reedição – “pois é muito fácil resvalar na autoflagelação e no autocompadecimento, e dessa forma incorrer numa das piores formas de exibicionismo”, como ele escreve no livro.

Autocrítica constante, sem autoflagelação ou autocompadecimento, são elementos indispensáveis para um tradutor, mas existe também um elemento central para a atividade: a ousadia. “Traduzir é uma ousadia. Quem sou eu para traduzir Dostoiévski? No entanto, é preciso ser feito. Tenho que aplicar toda a minha capacidade e fazer o melhor que posso. Mas é uma ousadia tremenda”, diz Boris, com toda lucidez, aos 96 anos.

De aparência frágil, este filho da Revolução Russa, ao receber a Continente no seu apartamento no Bairro de Higienópolis, corrigiu à mão, num exemplar, pequenos erros de edição do seu Tradução, ato desmedido. “Acontece nas melhores editoras”, disse ele. Um gesto incansável da busca pela perfeição. 

JOSIAS TEÓFILO, jornalista, mestrando em Filosofia pela UnB.

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