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“Ópera exige formação de um artista da Renascença”

Diretor André Heller-Lopes afirma que, na concepção de um espetáculo, tudo é importante, sobretudo uma educação cosmopolita, mas que a essência do trabalho está na partitura

TEXTO Josias Teófilo

01 de Setembro de 2013

André Heller-Lopes

André Heller-Lopes

Foto Josias Teófilo

André Heller-Lopes é um dos mais destacados diretores cênicos brasileiros no mundo da ópera, dirigiu aclamadas montagens recentes no Brasil, Argentina, Áustria, Inglaterra e Portugal. Detentor de três prêmios Carlos Gomes, ele é doutor pelo Kings College de Londres, especializou-se na San Francisco Ópera, nos Estados Unidos, e na Royal Ópera House, Covent Garden, de Londres. É professor do Departamento Vocal da Escola de Música da UFRJ e, recentemente, foi convidado pela Orquestra Sinfônica Brasileira para assumir o cargo de coordenador de elencos das óperas da temporada 2013.

Em maio, André Heller-Lopes dirigiu a sua sétima ópera no Theatro Municipal de São Paulo, com regência de Rick Wentworth. Trata-se de Ça iras (que significa “assim será”), obra do roqueiro britânico Roger Waters sobre a Revolução Francesa, com libreto do francês Étiene Roda-Gil, transportada por ele para um manicômio, cujos figurinos e cenografia foram inspirados nas obras do artista plástico brasileiro Arthur Bispo do Rosário – reconhecido por viver no limiar entre a loucura e a genialidade.

Em agosto, André fez seu debut no Uruguai, dirigindo Macbeth, ópera de Verdi adaptada da peça homônima de William Shakespeare. Ele trabalha no projeto de montar a única ópera de Astor Piazzolla, Maria de Buenos Aires, no Recife, a convite do Festival Virtuosi.

Ainda neste ano, André Heller-Lopes dirigiu a estreia brasileira de Sonho de uma noite de verão, de Benjamin Britten, no Rio de Janeiro – a ópera teve apresentação ao ar livre no Parque Laje, em meio à natureza exuberante do local.

À Continente, Heller-Lopes fala sobre sua formação, trabalho e sobre a recente – aclamada e controversa – montagem brasileira de Crepúsculo dos deuses, de Richard Wagner, que transpôs os cenários do mito da ópera para a cultura e o folclore brasileiros e, na última récita, chegou a encenar um caso homossexual entre Siegfried e Gunther – inexistente no libreto original. O diretor fala também da ópera de Roger Waters, apresentada no Theatro Municipal de São Paulo, em maio, que teve a presença do ex-Pink Floyd. Waters participou da montagem e até cumprimentou o público após cada récita, sendo ovacionado pelos fãs da banda e habitués da ópera.

CONTINENTE Podemos dizer que sua formação partiu do estudo acadêmico da ópera até a prática da direção cenográfica? Ou as duas atividades foram feitas paralelamente?
ANDRÉ HELLER-LOPES Um pouco de ambas, diria. A formação acadêmica é essencial, sempre. Mesmo que seja apenas para dar bagagem e asas à imaginação do artista. Como não existe, no Brasil, formação específica para direção de ópera, fui me especializar nos EUA e, depois, no Reino Unido. Talento e genialidade são apenas parte do nosso oficio; há que ajudar o dom divino...

CONTINENTE É preciso ter uma formação cosmopolita como a sua para dirigir ópera, um gênero tão iminentemente internacional?
ANDRÉ HELLER-LOPES Sim. Se você quer fazer bem, de verdade, isso exige conhecimento de música, idiomas, tradições, estilo e estética. Exige a formação de um artista da Renascença! Agora, em verdade, um bom diretor de teatro, que se dedique aos clássicos, também deveria ter a mesma formação.

CONTINENTE Como você concilia o cargo de coordenador de elencos de óperas da Orquestra Sinfônica Brasileira, o de professor na Escola de Música da UFRJ e, ainda, uma montagem como a da ópera Ça ira no Municipal de São Paulo?
ANDRÉ HELLER-LOPES Exige planejamento e dedicação – como para encenar uma grande ópera. A parte dos elencos, como fechamos tudo com antecedência, é definida ao longo do ano. No mais, fecha-se em dezembro, quando as férias acadêmicas já começaram. Com as greves mais recentes, os períodos ficaram conturbados. Mas, no caso de disciplinas como as do Departamento de Canto, não há como fazer greve e parar com um processo que é quase “muscular”, como de um atleta. Por mais que as greves possam ser justas, o artista não pode ficar sem prática.

CONTINENTE Chega a ser um desafio dirigir uma ópera tão contemporânea e recente como Ça iras, em que não há tantas montagens anteriores e, além disso, é inédita no Brasil?
ANDRÉ HELLER-LOPES Fazer ópera, no Brasil, é sempre um desafio. Anjo negro, de João Guilherme Ripper, com texto do pernambucano-carioca Nelson Rodrigues, feita ao ar livre, no ano passado, provou ser um enorme sucesso. A grande pena é não poder levar esses “desafios vencidos” para fora do eixo Rio-São Paulo.


Cena da ópera Anjo Negro. Foto: Bob Toledo/Divulgação

CONTINENTE Como é o processo de montar uma ópera de um compositor vivo como Roger Waters?
ANDRÉ HELLER-LOPES A grande diferença está na comunicação. Posso passar um e-mail com uma pergunta, posso pedir uma mudança.

CONTINENTE O que você acha dessa nova fase do Theatro Municipal de São Paulo, dirigido pelo maestro John Neschling?
ANDRÉ HELLER-LOPES O maestro é um administrador muito elogiado, figurou à frente do grande processo que resultou na Osesp, orquestra que é um orgulho nacional. É um maestro que conhece repertório, gosta de ópera e tem intimidade com o gênero. Ele compreende, por exemplo, a importância da continuidade de um projeto como o Anel Brasileiro, do Municipal de São Paulo. Somando-se todas essas qualidades, acho que temos uma ótima equação para dar ao país o mais importante teatro de ópera da América Latina.

CONTINENTE Na montagem de uma ópera, como é a interação entre o maestro e o diretor cênico? Chega a ser por vezes conflitante essa relação?
ANDRÉ HELLER-LOPES Desde que o maestro e o diretor conheçam seu métier, e a obra em questão, desavenças serão apenas na ordem do gosto artístico. Conflitos só acontecem com quem está inseguro.

CONTINENTE Quais as diferenças entre montar uma ópera no Brasil e na Europa? A tradição europeia influi em como as coisas são feitas?
ANDRÉ HELLER-LOPES Claro, especialmente no quesito planejamento e organização. Nós temos mais paixão, menos rotina. Porém, isso pouco adianta sem técnica.

CONTINENTE Com que o diretor cênico trabalha na montagem de uma ópera? A partir do libreto exclusivamente ou é importante a tradição de montagens anteriores ou até dados históricos?
ANDRÉ HELLER-LOPES Tudo é importante. Mas a partitura – música e libreto – é o ponto de partida.


Foto: Sylvia Masini/Divulgação

CONTINENTE Podemos dizer que existe uma afinidade sua com as óperas de Wagner, dado que você já dirigiu três delas (aliás muito elogiadas pela crítica)?
ANDRÉ HELLER-LOPES Certamente deve existir, pois também tive grande felicidade com óperas de Richard Strauss, sucessor de Wagner, por assim dizer. Não sei bem explicar como aconteceu, pois sempre achei que seria o homem da ópera italiana... Mas a afinidade com o alemão e com a cultura germânica criaram esse link. Acho que a forma mais psicológica do enredo dessas óperas também contribuiu para que os teatros buscassem um diretor de ópera, ao contrário de um encenador de teatro ou cinema. Acredite, dirigir um Rigoletto parece um passeio no parque em comparação com um Crepúsculo: o primeiro ato desta dura quase o mesmo tempo que a outra inteira!

CONTINENTE Existe um belo livro de Paul Valéry em forma de diálogo, Eupalinos ou o arquiteto, em que é feita uma comparação entre a arquitetura e a música: “Há duas artes que encerram o homem dentro do homem (...), de dois modos ele é envolvido por leis e vontades interiores, figuradas em uma ou outra matéria, a pedra ou o ar”. O seu trabalho me parece que está exatamente entre essas duas artes, a música e a arquitetura, ou seja, a cenografia. Que lhe parece essa relação?
ANDRÉ HELLER-LOPES Não sou cenógrafo, às vezes “estou” cenógrafo. Mas que trabalho entre duas artes, música e teatro, é verdade.

CONTINENTE Como foi o processo de transposição da atemporalidade mítica da ópera O crepúsculo dos deuses, de Wagner, para a cultura e o folclore brasileiros?
ANDRÉ HELLER-LOPES Foi fruto de muito estudo. A partir do momento em que senti que dominava tanto a mitologia como o conteúdo filosófico (Feurbach, em particular), pude mergulhar em nossa cultura. Repito: tudo começa e termina na união de estudo e inspiração. Meu conceito é honesto e original, pode agradar ou não –, mas será sempre porque ofereço do fundo do coração; jamais a cópia de alguém ou uma tolice provocadora.

CONTINENTE As críticas sobre a sua montagem de O crepúsculo dos deuses foram muito favoráveis. Inclusive, o fato de ter sido uma montagem integralmente nacional foi considerado um sucesso sem precedentes. Entretanto, uma crítica de Leonardo Oliveira, no blog Euterpe, destacou um elemento que parece não ter sido abordado na mídia impressa: a tensão homoerótica, inexistente no libreto original, entre Gunther e Sigfried, insinuada na montagem e que, segundo ele, altera a função heroica de Sigfried, assim desconstruindo todo o mito da ópera. Até que ponto uma montagem pode interferir num mito ou numa história tão consagrada?
ANDRÉ HELLER-LOPES Olha, uma critica é uma opinião. O que seria do amarelo se todos só gostassem do azul? Os críticos, sejam diletantes ou profissionais, têm direito de escrever o que quiserem (ou quase). Eu raramente leio críticas. Veja bem, respeito a opinião alheia e quero meu trabalho respeitado. A legitimidade do que fiz e faço está clara, durmo tranquilo. Agora, se um senhor “crítico” resolve não gostar, está no direito dele – a mim cabe apenas esperar que ele fundamente sua crítica. Acho tão tolo, como aconteceu com outra pessoa escrevendo, que veio criticar a presença de “boi-bumbá no Wagner”. Veja só que ignorância: ele não sabe a diferença entre as cavaladas de Pirenópolis e o bumbá e deu-se ao direito de criticar. No caso do crítico que você cita, “homoerotismo” estava sugerido, sim, mas não em Siegfried e sim no Gunther... E era baseado numa leitura do texto que ele canta. Siegfried não tem “culpa” nenhuma dos sentimentos que desperta em Gunther. Está tudo no texto, basta procurar o duplo sentido... Um processo, aliás, muito parecido com o que Wagner faz na música: Isolda diz “amaldiçoado seja!”. Quando, em verdade, quer dizer “eu te amo”, e a música apresenta esse seu subconsciente. Eu desejo ao público o mesmo prazer que tive, a mesma emoção que provo ao escutar e viver essas óperas, apenas isso. Sou fiel ao compositor e libretista, sou seu intérprete. Não pretendo mostrar que eu sei e ninguém mais; apenas dividir uma visão! Em resumo: venham à ópera, que ela seja parte da nossa vida; gostem ou odeiem, ao menos provem a força e a magia dessa experiência. 

JOSIAS TEÓFILO, jornalista e mestrando em Filosofia pela UnB.

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