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Bons jogadores também fora de campo

Festival Cinefoot, que chega ao Recife pela primeira vez este mês, terá entre os destaques de sua programação o filme 'Rebeldes do futebol'

TEXTO André Dib

01 de Junho de 2013

Imagem Reprodução

Apropriada por rockers dos anos 1950, a camisa com gola levantada voltou ao imaginário popular, décadas depois, pelo futebol. Nada a ver com o esvaziamento de seu significado promovido recentemente pelo nosso Neymar. O responsável pelo resgate, Eric Cantona, conta como aconteceu. “Não planejei. Um dia estava frio e levantei a gola. Ganhamos, então virou um hábito jogar com a gola levantada.” O visual se tornou uma das marcas do jogador francês, que, depois de se aposentar do campo, passou a investir na carreira artística, no cinema, primeiro como ator e, agora, no documentário que produz: Rebeldes do futebol. Nele, tomado por pretensões poéticas tête-à-tête com a câmera, Cantona apresenta ídolos do futebol que usaram a fama para promover mudanças em seus países.

Ainda que os subutilizemos nesse sentido, o cinema e o futebol são formas de arte e entretenimento que, de acordo com o grau de consciência de seus idealizadores, podem alterar a realidade política e social. Há quatro anos, pautados por essa busca, Gilles Rof e Gilles Perez, diretores do documentário, elencaram histórias de jogadores ao redor do mundo. O resultado seria uma série para TV. “Para o longa, escolhemos o casos mais emblemáticos”, disse Gilles Rof, no Festival 11-mm, o maior do mundo dedicado a filmes sobre futebol, realizado em março passado, em Berlim. “Este é o futebol que eu gosto, que quero promover. E não somente eu. Acho que muitas pessoas querem trazer de volta esse futebol que está na raiz.” No mesmo festival, ao lado de Rof, estava o ex-jogador Predrag Pasic, que, nos anos 1990, em plena guerra na Bósnia, fundou uma escola de futebol para crianças vítimas do massacre de Sarajevo.

Aí está a força de Rebeldes do futebol: em seus personagens. Além de Pasic (Bósnia), Carlos Caszely (Chile), Didier Drogba (Costa do Marfim), Rachid Mekhloufi (Argélia) e Sócrates (Brasil). Isso mesmo, o Doutor Sócrates encerra o documentário com os louros de ter fundado um sistema de gestão mais igualitário para seu clube (o Democracia Corinthiana) e, logo depois, em 1984, de ter se comprometido publicamente a permanecer no Brasil (ele tinha uma proposta para jogar na Itália), caso houvesse eleição direta para presidente. “Que jogador hoje iria condicionar a sua saída do país a uma emenda constitucional?”, pergunta Juca Kfouri, um dos entrevistados.

As histórias dos demais jogadores não são menos interessantes, e convergem para a mensagem de que, apesar de seu mainstream ser regido por interesses financeiros, o futebol pode ser muito melhor que isso. Na seleção ideal de Cantona, jogadores são heróis do povo. “Ser ídolo não deve te tornar incapaz de ver a realidade. Que importa, se você é admirado, se seu país está com problemas?”, pergunta Cantona, enquanto narra como Didier Drogba convenceu seus compatriotas a largar as armas diante da possibilidade da Costa do Marfim participar da Copa do Mundo de 2006.


O jogador brasileiro Sócrates está entre os personagens do filme, por ter se comprometido em permanecer no Brasil, caso ocorressem eleições diretas para presidente.
Foto: Reprodução

Apesar de a linguagem visual do filme beber na estética soviética e do vermelho saturado prevalecer nas sequências com Cantona, a sua intenção política de viés socialista nunca é maior do que o carisma pessoal dos jogadores. Entre esses, prevalece o de Cantona, cuja vaidade canastrona o levou a protagonizar o belo longa de Ken Loach, À procura de Eric. O próprio diretor inglês participa do documentário, no qual comenta que, ao produzir astros alienados e pautados por valores consumistas, a indústria da bola destrói a ideia de ação coletiva.

As ditaduras latino-americanas souberam tomar partido do esporte, quando serviram-se dele na manutenção de seus regimes (o longa uruguaio Mundialito é bem didático a respeito disso). No Chile de 1974, Pinochet usou um dos estádios que receberiam a Copa do Mundo como campo de concentração para 12 mil presos políticos. Meses depois, em condições controversas, a seleção chilena foi qualificada para o campeonato, ao jogar no mesmo local, sem oponente, pois a União Soviética havia se recusado a participar da disputa. Pinochet cumprimentou os jogadores um a um, mas Carlos Caszely, então um dos melhores do mundo, não estendeu a mão ao general e pagou caro por isso. Nos anos seguintes, foi ameaçado de morte e teve sua mãe cruelmente (e sexualmente) torturada.

A anódina gola levantada de Neymar se torna ainda mais ofensiva, se comparada à história de Rachid Mekhloufi, atacante nascido na Argélia, então colônia da França. Em 1958, aos 21 anos, ele e mais nove jogadores desertaram de seus times e foram para a Tunísia, onde formaram uma equipe pela libertação de seu país. A campanha surtiu efeito. Até 1962, quando a Argélia conquistou a independência, a seleção havia vencido 65 de 91 partidas em torno do mundo.

Rebeldes do futebol será um dos principais títulos do Festival Cinefoot, que há quatro anos nasceu no Rio de Janeiro, expandiu-se para São Paulo e chega neste junho ao Recife, Salvador, Fortaleza, Brasília e Belo Horizonte, cidades-sede da Copa das Confederações.

Antes da sessão no Recife, haverá uma homenagem a mais um rebelde, o jogador Almir Pernambuquinho, assassinado há 40 anos num bar do Rio de Janeiro. Em fevereiro de 1973, ele se meteu numa briga de bar, ao defender dançarinos do grupo Dzi Croquetes, atacados verbalmente por três es trangeiros. Outro homenageado ilustre do Cinefoot será Jota Soares que, além de ser pioneiro do cinema pernambucano, teve carreira como comentarista esportivo em jornais do Recife. 

ANDRÉ DIB, jornalista.

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