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'Ikiru': Dança com os mortos

Importante difusor da dança butô no Brasil, Tadashi Endo apresenta performance em que homenageia ancestrais e a obra de Pina Bausch

TEXTO Marina Suassuna

01 de Junho de 2013

No espetáculo, Tadashi Endo pinta todo seu corpo de branco, criando um aspecto melancólico

No espetáculo, Tadashi Endo pinta todo seu corpo de branco, criando um aspecto melancólico

Foto João Millet Meirelles/Divulgação

Com movimentos corporais lentos, o bailarino de butô estabelece uma relação espiritual com o corpo e a dança. O que se busca é a intensidade das emoções e sensações por meio da economia e leveza dos movimentos, o que exige um equilíbrio interno que só pode ser adquirido através da alma. Ela é que determina as sequências gestualísticas, sem que haja preocupação com a estética dos movimentos. Segundo o jornalista e bailarino João Butoh, em texto publicado no jornal Dança Brasil, essa modalidade, que tem origem nas tradições japonesas, retoma a ideia, por vezes esquecida, de que o dançarino não dança para si, mas para reviver algo maior.

Combinadas com técnicas de dança-teatro, as referências do butô são a espinha dorsal da performance solo Ikiru – Réquiem para Pina Bausch, do bailarino japonês Tadashi Endo – um dos principais responsáveis pela difusão do butô no Brasil. Ele chega ao Recife, pela primeira vez, no final deste mês para quatro apresentações na Caixa Cultural. Criada em 2009, ano da morte de Pina Bausch, a performance estreou em sua versão completa em Campinas (SP). Ela foi apresentada parcialmente em Berlim e Barcelona. Passou por várias cidades brasileiras e alemãs, entre elas, Brasília, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Frankfurt e Hannover.

Como todo bailarino de butô, Tadashi quase não usa vestimenta em cena. A maquiagem de aspecto melancólico e o corpo pintado de branco fazem com que as formas expressivas e os músculos estejam em evidência. “Minha preparação para o espetáculo se inicia no momento em que começo a me maquiar. O processo de pintar todo o meu corpo de branco é como se fosse um momento de cruzar um portal entre a minha vida normal e a minha dança, na qual me encontro com meus descendentes, com meus mestres e meus mortos. Essa preparação para o encontro gera em mim uma expectativa que me enche de adrenalina necessária para fazer e lhes dedicar o espetáculo”, explica o bailarino, que também assina a coreografia e a direção da performance. Em Ikiru, que significa “vida”, Endo faz uma homenagem aos seus mestres mortos através de uma perspectiva que elimina a aparente contradição entre o nome e a mensagem do espetáculo.


A ausência de vestimentas deixa os músculos em evidência.
Foto: João Millet Meirelles/Divulgação

Para ele, vida e morte estão separadas por uma linha tênue, uma vez que o nascimento é o primeiro passo para a morte. “Minhas performances sempre são uma forma de homenagem para pessoas mortas: meu pai, meu irmão mais novo, Kazuo Ohno, Pina Bausch”, explica. “Pina Bausch morreu, Michael Jackson morreu, Kazuo Ohno morreu. Isso é amedrontador – a morte está se aproximando. É triste perceber que os artistas que influenciaram meu trabalho, de repente, se foram – para sempre. Porém isso também me faz forte.”
Criador do butô no Japão, juntamente com Tatsumi Hijikata, Kazuo Ohno conheceu Tadashi Endo em 1989. Desde então, os dois mantiveram uma relação de parceria e colaboração que resultou na base criativa da dança de Endo. Já a influência do cantor e dançarino norte-americano veio quando o bailarino assistia a uma apresentação do astro na Alemanha. “Michael Jackson me fascina tanto, que, uma vez, durante um show dele em Hannover, em 1987, fiquei tão hipnotizado, que não percebi que o meu filho tinha desaparecido. Desde então, ele influencia a minha dança indiretamente. Aliás, quando me dei por mim, ao final do show, saí procurando meu filho e descobri que ele tinha sido resgatado por um segurança e visto o show no palco, ao lado de Michael Jackson”, conta o dançarino.

CAFÉ MÜLLER
No entanto, a maior inspiração de Endo para conceber Ikiru foi a obra da coreógrafa alemã Pina Bausch, que ficou conhecendo através do mestre Kazuo Ohno e do amigo músico Peter Kowald. “Eu tenho muito respeito pelo trabalho que ela desenvolveu com o Wuppertal (Opera Ballet) e a dança-teatro. Mas eu a amo ainda mais como ser humano. Através deste espetáculo, quero dizer a ela: obrigado, obrigado, obrigado, eu te amo.”


Os movimentos lentos e leves são característicos desta técnica.
Foto: João Millet Meirelles/Divulgação

A primeira catarse com o trabalho de Pina aconteceu quando assistiu Café Müller (1978), principal obra do repertório de dança-teatro da alemã. No espetáculo, bailarinos silenciosos e totalmente entregues dançam tropeçando em mesas e cadeiras distribuídas no palco, evitando encontros. “Quando vi Pina cega e incerta, fraca, mas forte, para ultrapassar todas as barreiras (cadeiras) com o desejo imperturbável de alcançar sua meta, fiquei muito impressionado. Nunca me esqueço dessa cena. Nesse momento, tenho que me tornar mais forte do que antes. Tenho a sensação que devo trabalhar muito mais. Ir mais fundo”. Não à toa, Endo surge de camisola branca em um dos momentos do espetáculo, o que remete claramente aos bailarinos de Café Müller.
Em cena, o único objeto com o qual interage é uma chapa de metal, que funciona como uma lápide e, ao mesmo tempo, um espelho, simbolizando o dentro e o fora. “Esse espelho é como Pina refletida em mim e eu refletido nela.”

O equilíbrio presente em sua dança também se relaciona às dualidades ying e yang, masculino e feminino, e o movimento eterno entre eles, o que remete novamente à obra de Bausch, que explorou a interação homem-mulher. No palco, Endo não só enfatiza a brevidade da vida, como protesta contra a morte sob outra perspectiva, quando ela é fruto da ação humana.“Em Ikiru, eu danço também a minha indignação contra a destruição da natureza através do homem, como, por exemplo, no acidente atômico de Fukushima, causada por um erro humano.” 

MARINA SUASSUNA, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.

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