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A morte da inocência norte-americana

Artistas das gerações de 1970 e 1980 revelaram aspectos das subculturas então insurgentes e anteciparam discussões prementes nos EUA

TEXTO Mariana Camaroti

01 de Agosto de 2012

Ensaio fotográfico 'Tulsa', de Larry Clark, revela lado sombrio da vida no campo

Ensaio fotográfico 'Tulsa', de Larry Clark, revela lado sombrio da vida no campo

Foto Divulgação

A arte norte-americana surgida a partir do pós-guerra, marcada pelo contexto político e econômico favorável, celebrou o apogeu do último império mundial. A televisão e o cinema de Hollywood, a propaganda pró-consumismo e a difusão do sonho americano permitiram que um ideal de cultura se alastrasse pelo planeta e o influenciasse. O leilão de obras emblemáticas daquelas décadas, como Double Elvis (1963), de Andy Warhol, e Sleeping girl (1964), de Roy Lichtenstein, ocorrido em maio deste ano em Nova York, e que arrecadou 37 e 44,8 milhões de dólares para cada obra, respectivamente, indica que a arte norte-americana das décadas de 1950 e 1960 continua em alta no mercado.

Porém, o apogeu dessa civilização – tão bem delineada por Andy Warhol e pela geração pop art – abriu passagem, a partir dos anos 1970, à desconstrução da cultura dominante daquele país e sua fragmentação em múltiplas subculturas. Esse movimento não tem nome nem escola, mas apresenta-se como uma tendência da cultura geral. Acirrada nos últimos tempos, essa produção viaja o mundo através de mostras, ganha prêmios em salões e bienais e levanta discussões.

Exemplo disso foi a exposição de Nan Goldin – a fotógrafa mais influente dos últimos 20 anos, segundo The New York Times –, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-Rio) em abril último. Causou polêmica pelo seu forte conteúdo de sexo, drogas, homossexualidade e presença de crianças nas cenas. Em janeiro, a mostra havia sido rejeitada pelo espaço Oi Futuro na capital carioca, com a alegação de não ser condizente com a proposta educativa do espaço.

Movidos pelo descontentamento com a injustiça social, a discriminação contra negros, mulheres e gays, com a voracidade consumista e com a falência daquele modelo de sociedade, artistas como Nan Goldin, Jean-Michel Basquiat, Larry Clark, Barbara Kruger, Jenny Holzer, Cady Noland, Paul McCarthy, Mike Kelley, Jeff Koons, Louise Lawler, Sherrie Levine, Richard Prince, Charles Ray e Cindy Sherman trazem à tona as angústias e insatisfações de uma geração que deseja se diferenciar da busca pela perfeição e do romantismo que marcou a dos seus pais.

Após os desenganos dos anos 1960 – o desapontamento quanto ao idealismo político, a derrota na Guerra do Vietnã e o arrefecimento do movimento hippie –, os artistas sentem a necessidade de dar vazão a outras experiências artísticas de caráter político. Por meio de diversas formas de expressão – fotografias, pinturas, audiovisuais, justaposições, esculturas, instalações, cinema –, revelam a subcultura das drogas, dos homossexuais, do sadomasoquismo, da dissidência política, dos novos movimentos religiosos. O cenário muitas vezes são ambientes frequentados por eles mesmos.


A paráfrase “Compro, logo existo” direciona a crítica da artista Barbara Krueger ao consumismo. Foto: Divulgação

Houve uma mudança conceitual na arte. A concepção dela como ambiente autossuficiente de práticas estéticas limitadas deu lugar à ideia de que o ato produtivo “não tem nada a ver com o talento da mão, mas, sim, com a capacidade de ver e decidir o que se tenta tornar visível”, usando as palavras do pintor alemão Gerhard Richter.

De acordo com o curador e escritor canadense Philip Larratt-Smith, estudioso do assunto, num sentido puramente técnico, essa ideia já estava presente nas obras de Andy Warhol, Marcel Duchamp e muitos outros artistas, embora nem sempre explícitas. Warhol é a figura-chave do pós-guerra, diz Smith. Então de que maneira sua influência pode ser identificada na ruptura social realizada por artistas como os aqui citados?

Em resposta à Continente, Larratt-Smith descreve: “Na fascinação pelo mundo under de Larry Clark, no uso de instântaneas de Nan Goldin, na criação de uma pessoa pública muito forte por Jean-Michel Basquiat, na manipulação dos estilos de publicidade de Barbara Kruger, nas serigrafias e negatividade franca de Cady Noland, nos métodos de Jenny Holzer para alcançar o público massivo e na exploração dos mitos de Hollywood por Paul McCarthy”.

“O que realmente se expandiu durante esse período foi primeiramente o conteúdo que a arte podia captar e, em segundo lugar, a incorporação dos meios técnicos com os quais a arte podia interceptar a cultura dominante”, analisa, no estudo El malestar en la cultura, publicado no catálogo da exposição Bye Bye American Pie, do qual Larratt-Smith foi curador.

A mostra foi exibida no Museo de Arte Latinoamericano de Buenos Aires (Malba) de abril a junho deste ano, reuniu 110 obras de sete dos mais importantes americanos contemporâneos que protagonizaram esse movimento de fragmentação da cultura dos Estados Unidos – Nan Goldin, Jean-Michel Basquiat, Larry Clark, Barbara Kruger, Jenny Holzer, Cady Noland, Paul McCarthy – e atraiu dezenas de milhares de visitantes.

“Um terceiro matiz nessa mudança foi o ponto de vista mais permissivo e a relação com o público. A originalidade absoluta não foi em nenhum caso o ponto mais importante, mas, sim, quem falava e para quem falava. Grupos que nunca tinham sido escutados ou interpelados começaram a formar seus próprios espaços”, completa Larratt-Smith. A maioria dos expoentes da arte contemporânea dos Estados Unidos comunica sua arte em forma de acting out – termo da psicanálise que se refere a ações de defesa do ser humano que expulsam da mente conteúdos percebidos como insuportáveis.


Cultura das minorias e das drogas marca enfoque das fotos de Nan Goldin. Foto: Divulgação

WHITE TRASH
Pode-se dizer que a decomposição da cultura hegemônica começou de uma maneira mais concreta com a publicação do ensaio do fotógrafo e cineasta Larry Clark, nascido em 1943, intitulado Tulsa, nome de sua cidade natal. A publicação (1971, 50 fotos) revela o lado sombrio da vida no campo e o submundo das drogas e do sexo no centro do país. “O tema é bastante white trash (termo depreciativo usado para designar pessoas brancas com pouca formação e perspectiva de vida), mas a composição clássica e o claro-escuro das fotos produzem uma tensão fina entre o conteúdo e a forma”, explica Larratt-Smith.

Tulsa foi seguido por Teenage lust (1982), The perfect childhood (1993) e Punk Picasso (2003), séries em que os jovens, a sexualidade e as drogas continuam presentes. Embora esses temas façam parte da vida do artista, ele consegue tomar uma distância narrativa enquanto se identifica com os seus personagens. “A qualidade cinemática e a arquitetura narrativa das suas séries fotográficas lembram filmes de gênero, desde o filme noir até a pornografia”, relaciona Larratt-Smith.

Vinte e quatro horas da vida de adolescentes em Nova York são a matéria-prima de Kids (1995), primeiro longa-metragem do artista. A película, que mostra jovens sempre drogados, durante o auge da crise da aids, teve aceitação e notoriedade e sucesso entre o público massivo.

Pequenos apartamentos alugados, sujos e com camas desfeitas, no subúrbio de Nova York, Berlim ou Paris, foram os cenários decadentes para que a fotógrafa americana Nan Goldin capturasse o cotidiano de seus amigos e se incluísse em alguns de seus instantâneos. Homens e mulheres injetam e cheiram drogas, fazem sexo, exibem seu lado mais cru – na presença de crianças, inclusive – diante da câmera, esta, testemunha de um grupo do qual poucos sobreviveriam. Os amigos de Nan morreriam dias, semanas, meses após virarem matéria para a sua obra em forma de diário de fotos.

Mas, para ela, esses registros são a melhor forma de expressar amor, para lembrar pessoas e momentos. O que fica claro, embora de uma forma chocante para as pessoas que assistem à sua obra-prima, The ballad of sexual dependency (A balada da dependência sexual, um audiovisual montado com imagens captadas entre 1981 e 2008). “Esse realismo e falta de pretensões tornam seu diário fotográfico uma fascinante e sincera crônica da sua vida”, é a interpretação oferecida no livro The 20th century art book (Phaidon).

MORDACIDADE
“Our prices are insane” (Nossos preços são uma loucura), alfinetava Barbara Kruger, em 1987, em uma de suas obras características, que se assemelham a cartazes ou outdoors, impactantes pelo contraste entre frases vermelhas sobre foto preto e branca e pelas suas enormes dimensões. Em mais uma crítica ao mercado, ela parafraseia o filósofo René Descartes: “I shop therefore I am” (Compro, logo existo), em trabalho do mesmo ano.


Detalhe do óleo sobre tela de Jean-Michel Basquiat. Foto: Divulgação

Na série contra o machismo e a posição inferior da mulher na sociedade, um rosto feminino é o pano de fundo para a frase “Our body is a battleground” (Nosso corpo é um campo de batalha) ou “It’s a small world, but not if you have to clean it” (O mundo é pequeno, mas não se você tiver que limpá-lo).

Com suas fascinantes e muitas vezes disjuntivas justaposições de texto e imagens, Kruger adaptou as estratégias de propaganda política clássica à ideologia consumista predominante dos Estados Unidos de Ronald Reagan. Suas primeiras obras foram pequenas colagens, enquanto ainda trabalhava como editora de revista, que depois ganharam grandes dimensões em serigrafias sobre vinil vermelho e preto que a tornaram conhecida.

Com referência ao construtivismo soviético e à publicidade da Madison Avenue, as montagens desta americana nascida em 1945 são maliciosas, engenhosas, perturbadoras e polêmicas. “A força da sua obra se baseia nas tensões entre as imagens apropriadas das colagens e as frases mordazes que questionam nossas suposições sobre o poder, o gênero, a sexualidade e o dinheiro”, comenta Larratt-Smith.

A mecanização do desejo, a experiência subjetiva estereotipada, a estratégia de venda dos desejos infantis, a usurpação da autoridade por parte dos meios de comunicação e o uso de tecnologias como mecanismos para garantir o cumprimento ideológico e o controle social são explorados ao mesmo tempo pela artista em sua obra. Sua linguagem direta e o uso de “você, nós, nosso” envolve o expectador, que, seduzido pela arte-crítica-propaganda, não consegue ficar indiferente nem seguir sem uma reflexão sobre o que vê e lê.

Consciente do seu público, e no intuito de se comunicar diretamente com ele, Kruger usou suportes em espaços públicos (cartazes publicitários, paradas de ônibus, capas de revista e até edifícios públicos inteiros) anticonvencionais ao mundo da arte. Recentemente, a artista aumentou as dimensões da sua obra, fazendo instalações que cobrem paredes, solos e tetos com textos, mas também com videoinstalações em que atores interpretam suas frases.

Já a relação próxima de Jean-Michel Basquiat (1960-1988) com Warhol fez com que ele “aprendesse” a cultivar a própria imagem na mídia e ascendesse meteoricamente a um mito da arte das últimas décadas. A sua morte precoce de overdose em meio a uma crise de criatividade e a perda de referência após a morte do amigo, com quem fez várias colaborações, ajudou a construir sua imagem de lenda contemporânea.


Esculturas gigantes de Paul MacCarthy parodiam ícones da cultura de massa.
Foto: Divulgação

O jovem afrodescendente, que começou como grafiteiro que fazia desenhos crípticos nos muros do Soho e assinava como “Samo” (abreviatura de “same old shit”, a mesma merda de sempre), misturou as tradições da cultivada pintura europeia com a cultura negra e as formas vernáculas das ruas. Tornou-se a primeira celebridade negra cultuada nos salões da arte, então terreno apenas de brancos, e beneficiou-se da veloz expansão do mercado de arte nos anos 1980.

Palavras repetidas obsessivamente e às vezes sublinhadas para serem vistas melhor, como o próprio Basquiat revelou, criavam um código pessoal em sua obra, numa alternância entre uma linguagem consciente e o gesto irracional, resultando em pinturas majoritariamente infantis, confusas, pictóricas, com caveiras, ossos, civilizações mortas.

APROPRIAÇÃO
Distanciando-se da temática dos seus colegas, Paul McCarthy utiliza os mitos da cultura de massa – como Papai Noel, os personagens de Hollywood, os mecanismos da política dos Estados Unidos, e o fascínio exercido pela Disneylândia sobre crianças e jovens, para desconstruí-los através de performances, instalações, desenhos e esculturas.

“Estou interessado na apropriação da estética de Disneylândia, abstraindo e distorcendo imagens (…), na Disney e no fascismo, nas crianças e no condicionamento, na autoridade e no patriarcalismo – uma mistura entre o natural e o antinatural (…), também me interesso pelos artefatos de Hollywood e pelos seus aparatos de produção como escultura”, aponta o artista no livro Conversation with Chrissie Iles (Yale University Press, 2008).

A tentativa de abordar temas atuais é feita conscientemente hoje pelos artistas que seguem a tendência de desconstrução da cultura hegemônica. Mas o mesmo não se pode afirmar olhando para as décadas de 1970 e 1980, quando esse caminho começava a ser trilhado. “Eu jamais diria que eles sabiam que estavam abarcando um tema tão grande quanto o declive ou a decadência dos Estados Unidos. Por outro lado, é inevitável que os artistas reflitam seu tempo e capturem coisas que o resto da população ainda não percebe”, opina Larratt-Smith.

Para o curador, esses americanos são dotados de uma capacidade incomum e sublimar: têm a necessidade de deixar o inconsciente falar, dar forma e simbolizá-lo. “Sempre me interessei mais pelos artistas que começam com suas próprias psicologias e não vice-versa”, revela. 

MARIANA CAMAROTI, jornalista.

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