Arquivo

'Baião de nós': Experimentações e um sotaque brasileiríssimo

Com direção musical de Zeca Baleiro, Tiago Araripe grava no Recife e em São Paulo seu segundo disco, três décadas depois do emblemático 'Cabelos de Sansão'

TEXTO Augusto Pessoa

01 de Abril de 2012

 Tiago Araripe, no início da década de 1980, quando gravou seu primeiro trabalho

Tiago Araripe, no início da década de 1980, quando gravou seu primeiro trabalho

Foto Divulgação

No final da década de 1980, Zeca Baleiro era estudante e fuçava numa loja de discos no Rio de Janeiro em busca de algo interessante, quando se deparou com um vinil, no mínimo, estranho. Na capa, montado num leão, no espaço sideral, um homem exibia sua vasta cabeleira. O nome da bolacha também não passou despercebido: Cabelos de Sansão.

“Uma sonoridade incomum, de cara, prendeu a minha atenção, assim como a voz aveludada do cantor. Fui ouvindo as canções e me assustando a cada faixa com a atmosfera sonora, a um só tempo ácida e lírica, rica de timbres, as letras de pura verve e os arranjos de espírito tão irreverente quanto engenhoso”, relembra Baleiro, no texto de abertura do relançamento de Cabelos de Sansão em 2008, pelo Saravá Discos. O selo foi criado pelo músico maranhense para resgatar trabalhos de qualidade que, por motivos comerciais, acabam não se enquadrando nos projetos das grandes gravadoras.


Trinta anos depois, músico exibe relançamento, em CD, do disco que chamou a atenção de Zeca Baleiro. Foto: Augusto Pessoa

Em março de 2012, após 30 anos da gravação do emblemático vinil, o cesarense Tiago Araripe voltou ao estúdio para a gestação do seu Baião de nós, uma parceria com músicos pernambucanos, cearenses, paulistas e, é claro, a participação mais que especial do amigo Zeca Baleiro, que, além de assinar a direção musical do trabalho, canta e divide duas composições com Araripe. “Depois da descoberta e do relançamento de Cabelos de Sansão pelo Zeca, o convite acabou sendo uma consequência natural”, explica Tiago. Junto com músicos da Orquestra Contemporânea de Olinda, o baixista e produtor Fernando Nunes e alguns outros convidados, o músico misturou os ingredientes guardados durante anos para gravar um disco que promete ser o resumo da sua extensa e diversificada experiência musical. Desde a época em que estudava arquitetura no Recife, na década de 1970, Tiago bebia nas mais criativas fontes disponíveis – do Tropicalismo ao vanguardismo de Frank Zappa –, mas sempre com os pés e os ouvidos cravados na cultura popular do Cariri cearense, onde passou a infância ao som das bandas de pífanos e reisados.

Foram essas influências, a propósito, que caracterizaram o Papa Poluição, grupo formado em 1975 por Tiago, José Luiz Penna, Paulo Costa e outros músicos. Ele agitou a vanguarda da música paulistana embalada pelo talento de gente como Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção e Tetê Espíndola, todos influenciados pela inquietação artística do famoso Lira Paulistana. “Na década de 1970, eu ouvi falar de uma certa escola de música que o Tom Zé havia criado em São Paulo. Mas, quando cheguei, a escola já tinha sido fechada. Minha sorte é que ele tem a capacidade de descobrir o que cada pessoa tem de melhor e de revelar isso”, diz Tiago, que, no convívio com Tom Zé, acabou sendo apresentado aos poetas concretistas Décio Pignatari e os irmãos Augusto e Haroldo de Campos. Alguns anos depois, Araripe adentraria o Lira Paulistana, que incendiava a cena cultural da capital paulista.


A música que dá título ao disco é uma parceria entre Zeca Baleiro e Tiago Araripe.
Foto: Augusto Pessoa

As parcerias surgiram naturalmente. Com Décio Pignatari, Tiago compôs duas canções, uma delas gravada no compacto simples Tom Zé e Tiago Araripe, de 1974. A outra foi o tango Drácula, apresentada no Festival Abertura da Rede Globo, em 1975, e que mais tarde se transformaria num videoclipe gravado nos porões do Theatro Municipal de São Paulo e exibido no Fantástico. É de alguns anos depois a trilha sonora criada pela turma do Papa Poluição para o filme Sargento Getúlio – vencedor do Festival de Gramado em 1983 –, que tinha Lima Duarte no papel principal.

SOLO EXPERIMENTAL
Depois da rica experiência com o Papa Poluição, Araripe entrou numa fase solo mais experimental, da qual surgiu o incrível Cabelos de Sansão. “Músicos fantásticos, como Oswaldinho do Acordeon, Tony Osanah, Jica e Turcão, Félix Wagner, Mané Silveira e Dino Vicente faziam a festa e os arranjos”, relembra Baleiro que, ainda hoje, gosta de ouvir o velho vinil.

Mesmo aparentemente afastado da música desde os anos 1980, Tiago nunca parou de criar. As letras das músicas que integram o Baião de nós são a prova de que o processo de criação do artista prioriza muito mais a qualidade do que a quantidade. Segundo Baleiro, isso é parte do mistério que envolve a criação musical. “As músicas do Tiago, que estamos gravando agora, mostram que ele continua compondo cada vez melhor. Essa coisa da criação é muito misteriosa, cada um tem seu ritmo e seu processo particular. Tem pessoas que escrevem 10 músicas por dia. Dorival Caymmi compôs pouco mais de 100 em toda sua carreira e todas são obras-primas, maravilhosas”, diz Zeca. Junto com Tiago, ele escreveu a letra da canção que dá título ao álbum e emprestou seu poderoso vocal à faixa que é, de longe, a mais nordestina do disco, com a inconfundível sanfona do pernambucano Beto Hortiz e uma merecida referência/homenagem ao rei Luiz Gonzaga e à rainha Marinês.


O processo, que aconteceu em várias cidades, contou com a participação do músico pernambucano Juliano Holanda. Foto: Augusto Pessoa

Baião de nós, a ser lançado pelo selo pernambucano Candeeiro Records, tem um pouco de tudo: desde as experimentações que caracterizavam o Lira Paulistana até o sotaque brasileiríssimo de quem nasceu no Ceará, descobriu Pernambuco e se encontrou musicalmente na São Paulo dos anos 1970. O mais curioso é que a própria produção do trabalho acabou percorrendo o mesmo caminho geográfico do artista. Uma faixa do disco foi gravada no Ceará – numa forma de incluir no registro músicos cearenses que Tiago admira. O caldo principal teve registro no estúdio Muzak, no Recife, com a participação do guitarrista Juliano Holanda entre outras pratas da casa. E acrescentou-se o tempero final do “baião” em São Paulo, com a entrada do guitarrista Tuco Marcondes, do tecladista Adriano Magoo – que, juntamente com Fernando Nunes, trabalham com Zeca – e a especial presença de Clarissa Araripe, filha de Tiago, nos vocais.

De 1982, quando Cabelos de Sansão foi lançado pelo selo Lira Paulistana, até hoje, muita água passou debaixo da ponte. Do encontro casual de Zeca Baleiro com um vinil escondido numa loja de discos no Rio de Janeiro ao relançamento do álbum e a parceria iniciada desse reencontro, surgiram os ingredientes que terminaram por compor uma receita única.

Baião de nós, realizado por meio de projeto aprovado pelo Funcultura, do Governo de Pernambuco, é o registro do talento de um músico que viveu intensamente uma das épocas mais criativas da música popular brasileira e que soube esperar a hora certa de nos presentear. A riqueza e a inteligência das letras, associadas aos arranjos que instigam nossa capacidade de sentir a arte em toda sua profundidade, tornam difícil a tarefa de definir o trabalho de Tiago, tamanha sua capacidade de nos fisgar. Talvez a melhor definição tenha sido dada por Tom Zé: “Uma arte cuja força sai diretamente dos nervos e persegue a exatidão com obsessiva raiva; transplante em que o dente fica no lugar da flor; ranhura no diamante; se quiser coisa que tal, bipe Tiago Araripe”. 

AUGUSTO PESSOA, jornalista e fotógrafo.

Publicidade

veja também

Lições dos dicionários

No cinema, a cidade como um reduto de "não lugares"

Coletivos: Inquietação criativa