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Pedro Nunes: Memórias vertidas em criação artística

Advogado e auditor aposentado toma partido de histórias ouvidas na infância, casos de vingança e acertos de contas, para criar romances que têm como cenário paisagens sertanejas

TEXTO DANIELLE ROMANI
FOTOS RICARDO MOURA

01 de Março de 2012

Pedro Nunes

Pedro Nunes

Foto Ricardo Moura

O sertão nordestino foi palco de lutas, invasões, sequestros e saques. Mas poucos sabem, e nem todas as publicações revelam, que, no final do século 19 e início do século 20, essas ações não foram responsabilidade apenas dos cangaceiros e dos fora da lei que transitavam pela região. A briga pelo poder no território sertanejo envolveu coronéis e autoridades policiais, religiosas e jurídicas, que transformaram municípios em verdadeiros feudos. Inconformados com isso, cidadãos de bem, que não admitiam ser manipulados, resolveram fazer justiça, não raro usando de extrema violência.

Apaixonado pelo Sertão, em especial pelo Cariri paraibano, onde residiu até os 14 anos, o advogado e auditor aposentado da Receita Federal, Pedro Nunes, cresceu ouvindo relatos sobre pessoas que pegaram em armas, seja por vingança, seja por questões de honra pessoal. Muitos desses casos foram narrados no alpendre de sua casa, na Fazenda Mugiqui, na qual chegou ainda bebê – vindo de São José do Egito, Pernambuco, seu local de nascimento.

Uma história em especial, a do bacharel Augusto Santa Cruz, conhecido como Sinhozinho Doutor do Areal, impressionou o menino Pedro, que esperou quase cinco décadas para recontá-la. A saga desse advogado – que, após ser traído e desmoralizado pelos poderosos do município de Alagoa do Monteiro, sitiou a vila com 200 homens, quebrou com marreta as portas da cadeia e perseguiu poderosos, como o prefeito, o juiz da comarca e militares – é contada nas 514 páginas do livro Guerreiro togado (Jabre Edições), publicado em 1997, e que se encontra na segunda edição.

A história de Augusto, ocorrida na década de 1910, é incomum. Após sitiar a cidade, rumou em direção a Juazeiro do Norte (CE) para pedir proteção ao Padre Cícero. Para garantir sua integridade, levou como reféns o prefeito e o delegado de Alagoa do Monteiro. Apesar de denunciado, nenhuma autoridade conseguiu frear a ele e seus homens, que chegaram são e salvos ao Cariri cearense.

Depois de entrarem lá, segundo narra Pedro, Augusto contou com a proteção dos coronéis Domingos Furtado, Antônio Pequeno e do padre local, que teria proferido aos moradores que ficaram receosos diante do forasteiro e seu bando armado as seguintes palavras: “O Doutor Augusto não é um bandido. Trata-se de um homem formado em Direito, que vem sofrendo perseguições políticas na Paraíba”. E, assim, Augusto permaneceu na cidade. Dali, reiniciaria nova fase de brigas, perseguições e invasões a municípios paraibanos, até meados de 1918. No fim da vida, já perdoado pelos crimes que cometera, voltou a atuar na área jurídica e a exercer cargo público como magistrado. Um final feliz para quem poderia ser chamado de herói inusitado.

“Meu pai, Pedro Nunes Farias, contava essa história, que me encantava. Depois de muitas décadas, resolvi descobrir o que era ficção e o que era verdade. Para tanto, entrevistei muita gente no interior, procurei o Instituto Histórico e Geográfico da Paraíba, li os jornais da época, e descobri um mundo. Contratei uma bibliotecária para fazer esse levantamento. Foram cinco anos de pesquisa”, conta Pedro Nunes, que tem outros três títulos, todos versando sobre o sertão e seus meandros.


Além de dedicar-se à literatura, Pedro Nunes cria peças inspiradas na ficção e nas tradições

Em Caatinga branca, o autor registra personagens da cena sertaneja e, através deles, penetra no ethos local. Em Cariris velhos, divaga sobre a terra, os homens, as histórias que ouviu contar em sua infância. Em Mundo sertão, terra não revelada, nova incursão no misto de personagens reais e ficcionais, sempre pautado na memória e na busca por esse território emocional.

O sucesso com as publicações foi inesperado. Desde Guerreiro togado, Pedro é convidado para palestras e debates no interior da Paraíba. Graças a eles, tornou-se sócio do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico de Pernambuco, do Instituto Histórico e Geográfico do Cariri e da Sociedade Paraibana de Arqueologia. Algo antes impensável para um bacharel que se dedicara, durante quase três décadas, apenas ao Direito e à advocacia. Os seus livros, aliás, não são encontrados em livrarias. Quem os desejar, tem que encomendar pela internet. “Eles vendem bem, e quero, como todo autor, ter lucro. Não faço por diletantismo”, afirma.

ESCULTURA E OBJETOS
O Sertão está presente em outros setores da vida de Pedro Nunes. Além dos livros, o advogado e pesquisador se dedica às artes plásticas, pela criação de esculturas e quadros que remetem a esse território.

Ao entrar em sua casa, num sítio da Região Metropolitana do Recife, o visitante é recebido por sete esculturas gigantes, em barro, que mesclam animais emblemáticos das fábulas de Esopo com as lendas da caatinga: a raposa, o cachorro, a onça, o bode, o cavalo, o boi e o macaco.

“As fábulas de Esopo e Lamartine chegaram ao Sertão e, para elas, o sertanejo criou novas versões. Esses animais estão presentes nos clássicos e também nas histórias contadas durante a noite, na varanda. Elas se misturavam às histórias de cangaceiros, vaqueiros, bois misteriosos, almas, casas mal-assombradas e botijas contendo tesouros”, observa Pedro, que ressalta: as figuras em argila não são criações exclusivas suas. São produzidas juntamente com o artista Uruda, que mora no Cabo. “Ele molda no torno e eu as retrabalho”, conta.

O advogado também produz belas peças com base em tampas de cisternas, esgotos e caixas subterrâneas, facilmente encontradas em pavimentos térreos. “Modelo no cimento, que aprendi a usar. Elas surpreendem todos que chegam à minha casa, pois são originalíssimas”, gaba-se.

Além dessas figuras, ele costuma esculpir formas abstratas em troncos e restos de madeiras encontradas na caatinga, a exemplo da imburana de carrão, que é usada por vários santeiros. “Essas madeiras são originárias da Fazenda Mugiqui, que herdei do meu pai e onde crio cabras e ovelhas. Só pego as madeiras que estão mortas”, diz.

A habilidade com as ferramentas foi adquirida na fazenda da infância, admirando o pai, que conhecia os segredos da marcenaria. “Aprendi a usar os instrumentos ainda novo. Depois de aposentado, comecei a colocar em prática essa habilidade. Descobri que tenho alma de artista”, conta.

“Só vim frequentar escola na adolescência, quando fui estudar no Seminário Diocesano de Campina Grande. Fui educado por padres holandeses, com uma disciplina forte. Acredito que vem daí minha tenacidade.” No seminário, estudou latim, grego, inglês e francês. “Traduzia Shakespeare e lia o Evangelho de São Lucas em grego. Tive chance de adquirir uma base humanista e cultural sólida.”

Em 1966, veio para o Recife. Em plena ditadura militar, participou de movimentos estudantis. “A Faculdade de Direito era um foco de resistência. Além disso, eu morava na Casa do Estudante de Monteiro, e era o presidente. Dom Helder Câmara inaugurou a casa. Padre Henrique – morto pela ditadura – era o capelão e assessorava nosso grupo. Quando ele foi brutalmente morto, ficamos penalizados, mas nos calamos, porque seria muito perigoso nos pronunciarmos”, lembra.

Anos depois, conheceu a esposa Maria Lucília, que morava em Monteiro, na Paraíba, e que hoje trabalha na confecção de doces maravilhosos, que fazem a festa dos que visitam a casa de Pedro Nunes. Ingressou na Receita Federal em 1978, como auditor, na qual trabalhou até 1993. Também atuou como professor de Direito Tributário na Escola de Administração Fazendária.

Somente na década de 1990 começou a escrever: “Sempre gostei de literatura, mas não imaginava que pudesse virar escritor”. A partir de 2003, passou a trabalhar com esculturas e montagens. “Foi como se eu renascesse e todo o meu passado emergisse. Diria que descobri uma vertente artística da qual não tinha conhecimento pleno, e que trouxe à tona minhas raízes sertanejas do Pajeú pernambucano e do Cariri paraibano”, descreve. 

DANIELLE ROMANI, repórter especial da revista Continente.
RICARDO MOURA, fotógrafo, estagiário da Continente.

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