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Homens da era do celuloide

Egressos da época de ampla distribuição de filmes em película e dos cinemas de bairro, Arlindo Gusmão e Antonio Silva são lendas vivas da Sétima Arte no Recife

TEXTO Marcelo Abreu

01 de Fevereiro de 2012

Imagem Pedro Zenival

Neste tempo de mudanças aceleradas na forma de distribuição de imagens em movimento, o Recife abriga dois personagens que viveram a época áurea do cinema, atuando no setor de distribuição de filmes. Trabalharam como uma espécie de caixeiros-viajantes da Sétima Arte, cada um à sua maneira. Percorreram o interior das regiões Norte e Nordeste para levar a centenas de salas de exibição as novidades dos estúdios de Hollywood e de outros centros de produção do mundo inteiro, inclusive da incipiente indústria cinematográfica brasileira.

Aos 88 anos, Antonio Silva é provavelmente o mais antigo homem de distribuição do país. Conhecido no meio como “Silva da Columbia”, ele entrou no ramo em 1945, após voltar da campanha com os pracinhas que lutaram na Itália, no final da Segunda Guerra Mundial. Silva começou na distribuidora da United Artists, no Recife. Depois trabalhou em São Paulo e Porto Alegre. Voltou à capital pernambucana em 1953 e, desde então, de uma forma ou outra, tem estado ligado à Columbia Pictures. Quando, na década passada, as distribuidoras desativaram suas filiais no Recife, Silva continuou no batente com a Sétima Arte, sua empresa que faz a intermediação de filmes entre os representantes do estúdio norte-americano em São Paulo e cinemas de algumas cidades de pequeno e médio porte no interior.

Outro apaixonado pela distribuição é Arlindo Gusmão, que está completando 81 anos, e ainda dá expediente numa pequena sala no Bairro da Boa Vista, onde tem sempre tempo para um papo com velhos amigos do ramo cinematográfico: programadores e técnicos em equipamento de exibição. Gusmão começou em 1952, trabalhando inicialmente na Metro-Goldwyn-Mayer. Depois passou pela Art Filmes, Warner Bros., pelas brasileiras Ipanema Filmes, Herbert Richers e Embrafilme. Depois, aproveitando sua longa experiência, fundou a empresa Aquário para distribuir filmes por todo o Norte e Nordeste.

EM TODO LUGAR
Silva e Gusmão personificam a figura do homem de distribuição, aquele que fazia a ligação entre os grandes produtores de cinema e o pequeno exibidor, o cineminha lá na ponta da linha, que não pertencia às cadeias de exibição. A força de Hollywood dependia, para seu sucesso, dessa rede de distribuição que irradiava os filmes até os mais longínquos pontos do planeta, cidades remotas, distantes das capitais e do litoral.

Os filmes eram vistos por plateias deslumbradas, inicialmente pelas imagens em movimento em preto e branco, e, posteriormente, pelas grandes produções em tecnicolor e cinemascope. Tudo isso antes da massificação da televisão, vídeo, DVD, multiplex, internet e pirataria. Podia demorar uns três anos, mas a cópia, já sambada por milhares de exibições, chegava num pequeno cinema de Araripina, no sertão de Pernambuco, ou de Santarém, no interior do Pará. Para chegar lá, o filme passava necessariamente pelas mãos de pessoas como Silva ou Gusmão.

A logística da distribuição de películas era justamente o centro da atividade de Antonio Silva. Os escritórios das distribuidoras no Recife controlavam toda a remessa no Nordeste (menos Bahia e Sergipe), e no Norte do país. Situadas no Bairro do Recife, as companhias norte-americanas empregavam dezenas de profissionais, entre programadores, locadores e revisores de obras cinematográficas. Quando Silva começou, o transporte das fitas ainda era feito pelas linhas de trem. No Norte, usavam-se barcos para cruzar os rios. Isso implicava a programação de um filme com dois meses de antecedência, para dar tempo de a fita chegar ao destino. Silva lembra o chamado “livro de programação”, um grande mapa em que eram anotados, à caneta, o nome de cada obra, as cidades por onde passava e o tempo previsto em cada cinema. “Era um jogo de xadrez”. Cada cópia tinha uma vida útil de três a cinco anos, até ser descartada por falta de condições de exibição.


Lula Cardoso Ayres Filho, Arlindo Gusmão, Arnilo Oliveira, Antonio Silva e Fernando Spencer, em inauguração de nova sala de cinema no Recife. Foto: Divulgação

Era uma logística muito complicada lidar com centenas de películas circulando simultaneamente por milhares de cidades e tendo de ser transportadas de cinema em cinema, dia após dia. Multiplique-se isso pelos oito grandes estúdios de Hollywood (Paramount, Metro, 20th Century Fox, Warner Bros., RKO, Columbia, Universal e United Artists) e se tem uma ideia do que isso representava no Brasil dos anos 1940 a 1960, quando as comunicações eram precárias, mas não faltava uma sala de cinema em quase nenhuma cidade de mais de 20 mil habitantes.

“Estamos falando de uma época que parece que nem existiu, mas era exatamente assim”, diz Silva, com um sorriso. Já nos anos 1960, com a melhoria do transporte rodoviário, a coisa ficou mais fácil. Ônibus e caminhões passaram a ser usados. Os aviões facilitaram o transporte entre São Paulo e Rio – onde estavam os laboratórios que produziam as cópias dos filmes vindos do exterior – e as demais capitais brasileiras. Silva era, então, o que se chamava de programador. Visitava duas vezes por ano as capitais do seu “território”, que iam de Maceió a Manaus. Além dos chamados “filmes de linha”, os importantes, ele organizava também a distribuição dos seriados juvenis que marcaram gerações, geralmente com aventuras no Oeste que passavam antes do filme principal, em episódios de cerca de 20 minutos cada. “Nomes como Tom Mix e William Boyd eram o sucesso da criançada”, relembra.

Hoje, num modelo de exibição bastante diferente, há grandes produções que estreiam, simultaneamente, com até mil cópias, como foi o caso do desenho Rio. Segundo Silva, até os anos 1970 raramente eram feitas mais de seis cópias de um mesmo filme. Isso significava que, depois de começar a passar no Rio de Janeiro, uma obra poderia levar até dois meses para chegar a uma cidade do porte do Recife.

O distribuidor da Columbia viu de perto os primeiros sinais de decadência do cinema no Brasil, com o fechamento das salas. Perguntado sobre os motivos, ele concorda com os mais citados: a interferência da televisão – “que roubou o horário principal, a sessão das 8 da noite” –, a chegada do videocassete, o DVD, a pirataria e a internet. Mas cita também motivos pouco lembrados. “Quando a coisa começou a balançar, um diretor da Fox, nos Estados Unidos, já dizia que o automóvel era o responsável porque as pessoas começaram a ir à praia, passar a noite fora e tinham menos tempo para ir ao cinema. No caso do Brasil, com a modernização das salas do centro das grandes cidades (com ar-condicionado e poltronas estofadas), as do interior e dos bairros não conseguiram se modernizar. Quando chegaram as salas de shopping, ninguém ia mais às de segunda linha.”

Silva acha também que a exibição de filmes pornô, no início dos anos 1980, representou o fim do chamado cinema de rua. “Quando passou o seu período de glória, tinha gente que não gostava daquilo e que não entraria jamais em um cinema de rua, mesmo que o filme fosse outro.”

Para quem sempre esteve ligado ao meio pela ótica comercial, Silva tem um notável carinho pelo cinema como arte. Só não gosta de efeitos especiais. “Não tenho mente para dissolver esse tipo de filme.” Mas vai ao cinema duas vezes por semana, com regularidade. Gosta de comédias, dramas, história. Em 2011, viu duas vezes Meia-noite em Paris, de Woody Allen.


Arlindo Gusmão mantém uma lista dos cinemas de bairro da cidade que foram fechados. Foto: Ricardo Moura

VIROU VINAGRE
Já Arlindo Gusmão era um caixeiro-viajante do cinema ainda mais pé-na-estrada. Trabalhou muito tempo como locador, o representante da distribuidora que vai de cinema em cinema oferecendo as novidades, estabelecendo contratos de exibição, definindo percentuais da arrecadação. Como um bandeirante da Sétima Arte, viajava sempre por todo o interior do Norte e do Nordeste.

Quando já não trabalhava mais para as grandes distribuidoras, Gusmão usou sua experiência na área para atuar de forma independente. Em viagens a São Paulo, comprava os chamados royalties (direitos temporários) de filmes de companhias independentes, mandava fazer cópias e as distribuía pelos cinemas do Nordeste. Quando cessava o prazo para as locações, ficava com as cópias. Mas por falta de condições de manutenção, perdeu tudo. “Cheguei a perder umas 400 cópias, que viraram vinagre. Entre elas, três de Chaplin”, diz com tristeza. “A última cópia que dei de presente foi El Cid”, relembra Gusmão. A película cinematográfica perde a qualidade com o tempo, e se deteriora completamente, se não for guardada em condições ideais de temperatura e umidade, coisas que poucas instituições têm como fazer adequadamente.

Nascido em Vitória de Santo Antão, Arlindo Gusmão trabalhou em lojas de tecidos e passou dois anos na Aeronáutica. Entrou no setor de distribuição aos 22 anos e nunca mais saiu. Ele fala com saudade dos cinemas que visitou nos subúrbios do Recife e em todo o interior. Excetuando as redes exibidoras, como a Luiz Severiano Ribeiro, que atuam nas capitais, todos os outros cinemas pertenciam a pessoas que moravam nas próprias cidades em que tinham suas salas. Gusmão fez muitos amigos entre os exibidores.

Pelos seus cálculos, somente o Recife chegou a ter cerca de 50 cinemas ao mesmo tempo, no final dos anos 1960. Como quase não havia filmes passando em mais de uma sala, simultaneamente, e a programação era tocada duas vezes por semana, era possível assistir a um número de títulos muito maior do que hoje. E entre os espectadores estava também Arlindo Gusmão, que, quando menino, foi fã de seriados como Flash Gordon e Zorro, o justiceiro mascarado, a que assistiu no antigo Polyteama. Já bem depois, não perdia produções épicas como Os dez mandamentos, Ivanhoé, o vingador do rei e Quo vadis . Entre os filmes considerados "de arte", lembra A classe operária vai ao paraíso, de Elio Petri, que ajudou a levar para o circuito de cineclubes e universidades. Sem preconceitos, chegou a distribuir filmes pornôs no começo dos anos 1980.

Assim como Silva, Gusmão é um homem da época do celuloide e do nitrato de prata, materiais usados nas antigas películas em preto e branco, até os anos 1950. O nitrato era tão inflamável, que os bombeiros eram chamados para incinerar as fitas que haviam cumprido seus anos rodando pelo Brasil. Tendo visto as muitas mudanças no mercado de exibição, ele agora acha “complicada” a adoção dos formatos digitais – entre outros motivos, pela série de problemas técnicos relativos à compatibilidade dos diferentes sistemas em uso.

Para Gusmão, mesmo a forma atual de exibição em película já não é tão boa como foi no passado, quando os projetores eram iluminados por um filete de carvão, material importado dos EUA e da Europa, em caixas. “O carvão dava mais luminosidade. É o mesmo carvão que no tempo da guerra usavam naqueles holofotes (para detectar a presença de aviões inimigos). A lâmpada de 4 mil watts tem uma boa luminosidade, mas o carvão cobreado de 90 ampères era espetacular”. Palavra de quem vê cinema há mais de 70 anos. 

MARCELO ABREU, jornalista, professor universitário, autor de livros-reportagem e de viagem, como De Londres a Kathmandu.

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