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Delano

TEXTO João Câmara

01 de Janeiro de 2012

Mesmo nas pinturas que Delano veio a fazer, o desenho é preponderante

Mesmo nas pinturas que Delano veio a fazer, o desenho é preponderante

Foto Reprodução

Soy el imaginador de una cosa: la no-muerte, y la trabajo artisticamente por la trocación del yo, la derrota de la estabilidad de cada uno en su yo”
(Macedonio Fernandez, em Museo de la Novela de la Eterna)

“A fila está encurtando, seu João. Disse isso para Marco Polo, falei para ele, outro dia, que já dava para ouvir as chaves de São Pedro tilintando...”

Delano falou-me isto na última vez que o vi, vivo e brincalhão. Via-o constantemente – nossos ateliês ficam na mesma rua, a poucos passos. Às vezes, conversávamos na calçada, como naquela última vez em que ele, inadvertido, tangenciou com humor machadiano o presságio perigoso.

Levianos, falávamos da morte dos outros, até porque, como está gravado no último ready made de Marcel Duchamp, sua lápide, “Aliás, são sempre os outros que morrem”.

Bom paradoxo e boa lógica, mas pouco consoladores. Melhor fez Macedonio Fernandez, citado na epígrafe, em não contrapor Vida à Morte, escapando de opostos óbvios e refugiando-se no território da não morte, dissolvendo o ego em entes e coisas que a Comadre Morte não pode discernir.

Basta de morte. Só uma sensação, ainda. Delano morreu moço, quero dizer: hoje se espera viver mais. Vê-se mais gente na maratona da senectude e, ainda mais, gente nova atropelando-a e a pisoteando com arrogância juvenil legítima ou meramente cruel. Quase todos chegam ao pódio, maltratados embora. Digo que ele morreu moço, porque nossa amizade fraterna estabeleceu uma juventude residual e disponível, uma resistência aos achaques físicos e às agruras do espírito.

Com a idade, fomos ficando mais e mais recolhidos, Delano mais que eu, até. Caseiro seria exata palavra para ele. Não por acaso, sua mulher Macira é ambientadora. Ele percorria um roteiro exíguo no largo desenho projetado por Macira. Da televisão para o estúdio, dali para a rede, uma vista ao mar, pela varanda, de volta à rede, olhos postos em Brás Cubas.

Bem antes, porém, quando jovem de verdade, Delano fez o mundo. Viveu em São Paulo em meio à contracultura da poluiceia desvairada. Fazia desenhos no INPE, pela grana. Um dia, largou o guarda-pó no espaldar da cadeira e foi ser free lancer para jornais. Fixava os gols da rodada com desenhos esquemáticos.

Veio daí seu gosto por futebol? Tornou-se jogador esforçado e exigentíssimo nas peladas que, artistas quase todos, organizávamos aos sábados, em Olinda. Mas, antes do futebol, em São Paulo, talvez influenciado pelas piruetas de Bruce Lee, tentou as artes marciais. O resultado da imprudência foi uma cirurgia de vértebras tão dolorosa quanto o baque no tatame que a motivou. A vantagem foi que voltou para Pernambuco.

Delano estudou desenho com Abelardo da Hora no MCP, nos anos 1960. Ficou-lhe o gosto pelo croquis de pose rápida, a observação sintética e a ênfase no traço. Mesmo nas pinturas que veio a fazer, o desenho é preponderante. Está lá, conspícuo, nem tanto por exigência da figuração – à qual foi fiel e devoto –, mas pelo traçado que indica um panejamento, uma tatuagem cifrada na pele de um nu, o rasgo de movimento numa paisagem. As figuras cobrem-se com as roupas destes traços veementes que, vez por outra, são vestes que tomam o espírito e a descrição dos personagens, como se estes estivessem indumentados pelo indício de uma pintura. A roupa pelo personagem, o hábito pelo monge ou por outras figuras menos beatíficas. Há ironia nas pinturas, mas não há ódio, nenhuma intenção prática de ferir. Alguns personagens estão mais aflitos de estar ali, na tela, que satisfeitos com o exibicionismo contingente. Essa metáfora de urdiduras, roupas e disfarces convive com coisas prosaicas e com o inusitado. Delano não era imune à fantasia disparada pelo absurdo pacífico de uma cena, de um tipo ou de uma fotografia escandalosa em revista ou jornal. Aliás, era impossível ver televisão na casa dele. Munido do remoto, zapeava por todos os canais, criando clips cinéticos e dadaístas. Veio-lhe depois um computador e a internet, o que lhe permitiu melhor serenidade voyeurística.

Essa nova janela, de dentro de sua clausura, era propícia a seu temperamento discreto. Permitia que espiasse sem ser incomodado, podia pescar o brilho, a vanitas vanitate do mundo e comentá-la, sem que dessem por isso.

Por outro lado, convenhamos, seu ascetismo domiciliar, seu isolamento (com exceção às poucas amizades), subtraiu-o da escalada do currículo artístico, do poder e da glória prometidos à carreira. Isso não se devia, nele, à humildade ou modéstia. Sabia exatamente o que queria. Avesso a exibir, porém, poucas foram as exposições que realizou. Daí que se desconheça a latitude do que produziu e que reside em gavetas, dentro de livros, num canto mais escuro do ateliê. É tempo agora de que essas coisas sejam iluminadas. 

JOÃO CÂMARA, artista plástico e ensaísta, autor da série de pinturas e litografi as Cenas da vida brasileira.

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