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O segredo do olhar dos hermanos

O cinema argentino se firma como produtor de filmes de variados gêneros, mesclando qualidade e apelo comercial

TEXTO Dora Amorim

01 de Junho de 2011

Filme de Pablo Trapero, com o ator Ricardo Darín, 'Abutres' é outro título argentino a ganhar remake em Hollywood

Filme de Pablo Trapero, com o ator Ricardo Darín, 'Abutres' é outro título argentino a ganhar remake em Hollywood

Foto Divulgação

Quem é melhor, Pelé ou Maradona? Todo brasileiro que gosta de futebol odeia perder para os argentinos e vice-versa. Rivalidades à parte, é sabido do público e, principalmente, dos realizadores brasileiros que, há algum tempo, o cinema argentino é sinônimo de qualidade. Famoso pela ótima literatura, imortalizado por grandes escritores como Jorge Luis Borges, Júlio Cortázar e Adolfo Bioy Casares, o país fortalece o seu nome em outro campo da cultura: o do cinema.

Se, na década de 1960, o Brasil estava contagiado pela novidade e pelo experimentalismo do Cinema Novo de Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e Cacá Diegues, os hermanos lançavam uma nova geração de diretores muito jovens que se destacou pelo caráter autoral, herdado dos franceses da Nouvelle Vague. Entre as principais obras desse período, estavam: El jefe, de Fernando Ayala, Alias Gardelito, de Lautário Múrua, e Los jovenes viejos, de Rodolfo Kuhn, marco daquela geração e do cinema latino-americano em geral. Entre elogios e ironias, os brasileiros acusavam esses realizadores argentinos de não possuírem uma alma latina, uma essência regionalista, que era a grande marca do Cinema Novo.

Na verdade, a Geração de 60 ou nuevo cine argentino, como ficou conhecida, queria combater o cinema comercial, dominado pelos grandes estúdios do país desde a década de 1940. Contudo, essa produção independente sucumbiu por não ter distribuição (muitos filmes eram comprados pela indústria mexicana para evitar concorrência), pela censura da ditadura militar e por sofrer de uma crise de “equívoco moral”, como pontuou Glauber Rocha. “Evidentemente, a maioria dos cineastas da Geração 60 refletiu sobre os erros, atingiu a consciência latina, mas não pôde fazer filmes. O espírito independente, contudo, produzirá mais cedo ou mais tarde um novo surto, embora nada faça prever uma democratização política e cultural para um breve futuro”, observou o cineasta brasileiro, no livro Revolução do Cinema Novo, de 1967.

RETOMADA
Em 1986, o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro para A história oficial, de Luis Puenzo, dava indícios de que a produção argentina poderia despontar como uma das mais reconhecidas e respeitadas do continente sul-americano. A década seguinte ao prêmio ainda foi bastante tímida em relação ao sucesso alcançado durante os anos 2000. Sem se abaterem com as sucessivas crises econômicas, os realizadores argentinos desenvolveram histórias que tratavam de temas universais, mas pontuavam seus roteiros com personagens e situações típicas de um país latino-americano em crise.

Esse segundo nuevo cine argentino ou buena onda fortaleceu nomes como o de Juan José Campella, que viria a ser o ganhador do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, em 2010, com O segredo dos seus olhos, e de Fabián Bielisnky, responsável pela produção Nove rainhas (2000), que rodou todo o mundo e ganhou mais de 20 prêmios internacionais. Com essa retomada, o cinema argentino popularizou-se e ficou conhecido, especialmente, pelo tom dramático. Entre brigas de famílias, histórias de amor, e trapaças, esses filmes, regados a discussões acaloradas e reviravoltas surpreendentes nos roteiros, sensibilizaram o público e contabilizaram milhões de espectadores por todo o mundo. Contudo, mesmo se “aliando” a um projeto cinematográfico mais popular e comercial, diretores como Marcelo Piñeyro (O que você faria?) e Campella (Filho da noiva, O clube da Lua) conseguiram abordar a realidade nacional, que se manifestava artisticamente através do cinema, sem nunca deixarem de lado os conflitos pessoais.

Além do melodrama, é curioso observar que, longe dos holofotes, diretores mais jovens começaram a produzir um cinema minimalista, sugestivo, que tinha como principal interesse a análise e a investigação dos seus personagens. Sem grandes produtoras ou financiadores, esse núcleo independente conquistou seu espaço pela boa qualidade dos filmes apresentados. Nesse contexto, não há como esquecer o nome do cineasta Daniel Burman. Em 2004, com apenas 29 anos, ele lançou O abraço partido, seu terceiro longa-metragem, marco do início dos anos 2000. Com essa obra, ele se tornou referência no circuito alternativo sul-americano e figura obrigatória nos principais festivais de cinema.

Outro nome importantíssimo é o da cineasta Lucrecia Martel. Em 2001, com O pântano, ela ganhou o prêmio Alfred Bauer, em Berlim, dado a filmes que “abrem novas perspectivas para a arte cinematográfica”. Sua última produção, A mulher sem cabeça (2008), participou da seleção oficial de Cannes; lenta e fragmentada, a obra não é para todos os gostos. Através de uma narrativa densa, a diretora expõe um cinema deliberadamente humano, o grande diferencial da sua geração. Embora não possua uma unidade estética e, por isso, não configurem num movimento, os nomes de Lucrecia, Burman e Pablo Trapero são sempre lembrados em conjunto. Eles também foram responsáveis por abrir portas e dar visibilidade a um cinema pouco comercial e bastante intimista.


Dois irmãos, obra de Daniel Burman, comprova talento dos argentinos em filmar temas delicados. Foto: Divulgação

Entre filmes restritos a um circuito mais “alternativo” de festivais e outros que seguem um modelo comercial menos arriscado, e chegam às salas de multiplex, produz-se muito no país. “Hoje, há vários tipos de cinema, na Argentina. Eu, na verdade, estou buscando uma mescla do cinema de autor com o comercial, é muito difícil de ser feito e poucos diretores tem tentado, um exemplo é Carlos Sorin. Mas, cada um faz cinema como é possível, meus filmes são assim porque saem assim e não necessariamente porque eu me propus a algo”, observou Pablo Meza, diretor dos filmes Buenos Aires 100 km e A velha dos fundos.

APOIO ESTATAL
É interessante observar o apoio dado pelo Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales (Incaa) à produção audiovisual do país. Criado como um órgão ligado à Secretaria de Cultura de La Nación, mas com autonomia financeira, a instituição desenvolve políticas de fomento para levantar recursos, através de taxas sobre os ingressos dos cinemas, sobre o aluguel e venda nas locadoras e sobre as emissoras de televisão. Cerca de 10% do que é arrecadado com ingressos nas bilheterias das salas argentinas de cinema, por exemplo, revertem-se para o instituto, que investe na produção de novos filmes.

Além de ser responsável pelo incentivo financeiro, o Incaa também distribui os filmes produzidos para fora do país e possui espaços culturais com salas de cinema espalhados pelo território nacional. Divulgando para os argentinos a cinematografia local, mantém uma programação variada, contemplando filmes premiados e outros produzidos em mostras universitárias. As coproduções internacionais também estão crescendo; depois de assinar um convênio com a Itália e a Alemanha, é a vez do Brasil. No último Festival de Cinema do Rio de Janeiro, que discutiu a cinematografia argentina, a Agência Nacional do Cinema (Ancine), órgão oficial do governo federal brasileiro, e o Incaa firmaram um acordo de cooperação que estimula a produção conjunta entre os dois países.

O instituto também foi responsável indiretamente pelo reconhecimento do trabalho desses novos autores. Em 1995, um grupo de cineastas ganhou edital do Incaa para curtas-metragens e decidiu apresentar suas produções conjuntamente, sob o título Historias breves. O projeto, desenvolvido como incentivo a jovens realizadores, foi um sucesso de crítica e público, revelando os nomes de Adrián Caetano, Bruno Stagnaro, Sandra Gugliotta, Daniel Burman, Lucrecia Martel y Ulises Rosell.

SUCESSO INTERNACIONAL
Maior bilheteria nos últimos 35 anos do cinema argentino, O segredo dos seus olhos ganhou o Oscar de 2010, desbancando os favoritos A fita branca (Michael Haneke) e O profeta (Jacques Audiard). Com 2,5 milhões de espectadores e arrecadação de 8,5 milhões de dólares no seu país de origem, o filme foi um sucesso no Brasil, onde teve cerca de 200 mil espectadores, número considerado alto para os padrões do cinema “alternativo”. Com essa obra, Campella fez um filme noir invejável para os padrões norte-americanos, mas Hollywood (é claro) não ficou para trás e já garantiu o remake, com possível direção de Billy Ray (O preço de uma verdade).

Outro filme argentino que ganhará uma releitura é Abutres, de Pablo Trapero. O longa-metragem foi o candidato oficial da Argentina para concorrer ao Oscar de 2011, mas não ficou entre os cinco finalistas. A obra explora o trabalho de advogados “abutres” (caranchos) que lucram com os acidentes automobilísticos e investiga a cidade de Buenos Aires. Trapero, com José Juan Campella em O segredo dos seus olhos, se arrisca num filme de gênero que agradou ao público por não cair nos excessos comuns às produções hollywoodianas. Até agora, o diretor mais cotado para assumir o remake é Scott Cooper (Coração louco).

Além de receberem refilmagens de grandes estúdios norte-americanos, essas obras têm em comum o fato de serem estreladas pelo ator Ricardo Darín. Embora resista ao título de “ator mais importante da produção argentina” ou “rosto do cinema porteño”, ele participou, na última década, de produções que marcaram a filmografia argentina contemporânea.

Filho de atores, Darín começou a trabalhar no teatro com apenas 10 anos e assumiu o título de representante dessa buena onda. Na semana de estreia, o seu novo filme (abril de 2011), a comédia Un cuento chino, teve 250 mil espectadores, provando o sucesso e o reconhecimento do ator em seu país. Recentemente, ele recebeu a proposta de trabalhar com Walter Salles, ao lado do também ator Gael Garcia Bernal, e está avaliando a participação em mais três filmes brasileiros.

DESTAQUES RECENTES
Nos últimos meses, dois filmes argentinos circularam pelos principais festivais de cinema do Brasil, recebendo elogios e comprovando a boa mão dos argentinos para o tom mais intimista de seus filmes. Dois irmãos (exibido no Festival de Gramado, no Festival do Rio de Janeiro e na Mostra de São Paulo), sétimo longa-metragem de Daniel Burman, revela um diretor maduro e novamente interessado nos assuntos familiares – afinal de contas, “tudo passa pela família”, em suas próprias palavras. Adaptação da obra Villa Laura, de Sergio Dubcovsky, o filme acompanha os dois irmãos do título: Suzana (Graciela Borges) e Marcos (Antonio Gasalia) e reflete sobre as suas diferenças. A produção aborda também a relação entre dois primos distantes: Argentina e Uruguai. Há uma ligação muito forte entre os países que, assim como os irmãos, estão separados pelo Rio Del Plata e por rivalidades passadas.

Outro filme que, por coincidência, está centrado em dois personagens é A velha dos fundos, do diretor Pablo Meza, ganhador dos Kikitos de Melhor Roteiro e Ator (Martín Piroyansky), no último Festival de Gramado. A ideia do filme surgiu quando Pablo estava olhando os classificados do jornal e percebeu que havia muitos anúncios de idosos que alugavam quartos para estudantes, não por dinheiro, mas pela companhia. Na obra, Rosa é uma senhora que “aluga” um dos quartos da sua casa para o estudante de medicina Marcelo (Martín Piroyansky), sob a condição de conversarem todos os dias. Com apenas dois longas-metragens no currículo, é notável o cuidado de Pablo Meza ao tratar do assunto “humano”. “Eu gosto de mostrar a intimidade das pessoas dentro das suas casas. Quando escrevo um roteiro, sempre penso mais nos personagens do que na história em si, porque essa história vai se desprendendo dos personagens. É mais fácil escrever um bom filme quando se conhece muito bem os seus personagens”, observou o cineasta.

“Temos muitas histórias para contar”, afirmou Pablo Menza, entusiasmado quanto à produção argentina, em certo momento da entrevista. Quanto ao público brasileiro, deixamos qualquer sentimento de competitividade de lado e esperamos (boas) novas produções dos hermanos

DORA AMORIM, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.

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