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Trânsitos: Muito além do não lugar

O filósofo Alain de Botton aponta o aeroporto como o espaço onde se encontram amostras de temas atuais, como a passagem do tempo, a coletividade e a noção de mortalidade

TEXTO Schneider Carpeggiani

01 de Janeiro de 2011

Em 2009, Alain de Botton passou uma semana no aeroporto de Heathrow, em Londres, experiência que resultou em 'Uma semana no aeroporto'

Em 2009, Alain de Botton passou uma semana no aeroporto de Heathrow, em Londres, experiência que resultou em 'Uma semana no aeroporto'

Foto Divulgação

Se sinceridade fosse moeda corrente, nossa pergunta diante de qualquer possibilidade de viagem não seria “Para onde?” e, sim, “O que eu quero mudar?”. Nas artes e na religião, jornadas são constantes metáforas de revolução, do desejo de desencadear uma transformação interna, uma subversão no destino. “Os teóricos cristãos não estavam preocupados com os perigos, desconfortos ou gastos envolvidos na travessia, pois encaravam todo aparente obstáculo como um claro artefato divino para revelar o aspecto espiritual latente da viagem”, explica o filósofo pop e escritor sueco Alain de Botton.

Como bem sabemos, nenhuma mudança acontece sem o mínimo calvário no meio do caminho. E esse calvário hoje é bem-representado (ou melhor: muito bem- representado) pela “instituição” aeroporto. Afinal, aeroportos são minados campos emocionais, onde esperas podem se verter em aventuras bíblicas, onde a noção de segurança ganha ares histéricos e refeições costumam ser servidas por funcionários com expressões de incurável sono perdido.

“O principal problema com os aeroportos hoje em dia é que eles se transformaram em lugares pouco acolhedores, cada vez mais fechados em si mesmos”, afirmou Botton, em entrevista para a Continente por e-mail. Ainda assim, segundo ele, as coisas podem ser tratadas com mais leveza e humanidade.

Tal crença vem do estranho hábito de Botton de, secretamente, desejar um atraso em seus voos, apenas para vagar pelos corredores de um aeroporto, sem pressa. Seu sonho era um cancelamento de última hora, que o levasse a praças de alimentação vazias madrugada afora ou a pernoites em hotéis de letreiro com neon avermelhado. Tanto sonhou, que, em 2009, topou o convite da empresa que administra o aeroporto de Heathrow, em Londres, para passar uma semana em suas instalações, observando e fazendo anotações que renderiam um livro, Uma semana no aeroporto (Editora Rocco).

Sua reportagem/ensaio é um exercício de voyeurismo que apresenta paisagens que um viajante comum nem imaginava existir, como a do galpão em que as aeronaves são consertadas. O livro ganha força quando nos ajuda a olhar através dos corredores por onde passamos sempre com pressa ou certo enfado, com alguma garrafa de uísque na mão ou armados com revistas que servirão para o nobre propósito de “matar o tempo”. Na verdade, o que Botton nos propõe é fugir desse desejo de se teletransportar de um lugar para outro como num passe de mágica. Sua proposta é: onde quer que você esteja, respire e olhe ao redor com atenção.

Quem conhece a carreira de Botton sabe que ele costuma lançar seu olhar sui generis e suas citações filosóficas por territórios nada usuais. Ele já escreveu um livro de autoajuda tomando como exemplo de revolução pessoal o lamuriento Marcel Proust, tentou compreender nossas leis trabalhistas e quis provar o quanto Aristóteles e seus contemporâneos ainda sabem das coisas, mesmo neste nosso mundo wi-fi. Diante de um currículo assim, é até “convencional” a nova empreitada. Mas o curioso da história é que ele se preocupou em jogar por terra o conceito-clichê de que aeroportos são “não lugares”.

“Sobretudo depois do 11 de Setembro, os aeroportos se tornaram de forma tão intensa sinônimo de ameaças terroristas, que viraram os lugares mais perigosos do mundo, hoje. Mas é preciso mudar essa ideia. O problema real com os aeroportos é que tendemos a pensar neles apenas como uma plataforma entre nós e um avião. E porque é tão difícil encontrar o portão de embarque certo, acostumamo-nos a nunca olhar ao nosso redor. Os aeroportos são o centro do mundo moderno. É aqui que você encontra, de maneira concreta, todos os grandes temas da modernidade que só costumamos visualizar de forma abstrata. Aqui você observa o que significa globalização, consumismo selvagem, famílias se partindo ao meio e todo o sublime por trás da palavra moderno”, empolga-se o escritor.

A grande surpresa de Botton nem foi o que ele encontrou no Heathrow, mas a motivação do convite: “Achei surpreendente e até comovente que, nos distraídos tempos que correm, a literatura ainda pudesse ter prestígio suficiente para inspirar uma empresa multinacional. Entendi que o dinheiro acumulado nos campos de batalha, ou no mercado, poderia muito bem ser realocado em objetivos estéticos mais elevados. Tenho convicção de que é um compromisso do escritor permanecer engajado com a atualidade das questões políticas e econômicas. É claro que a tentação para quem escreve é sempre se fechar numa caverna ou se esconder numa torre. Mas quanto mais saímos para o mundo lá fora, mais os insights se tornam claros”.

Na entrevista, Botton fez questão de enfatizar seu fascínio pelo objeto de estudo, que parece só ter aumentado depois desse livro: “Aeroportos são lugares onde a tecnologia encontra a cultura de consumo, onde nos sentimos na presença da mente gigante do mundo moderno. Frequentemente nos encontramos em ambientes que não mudaram muito desde o século 19, mas, de repente, num aeroporto, nós vemos as promessas concretas da modernidade: as promessas de velocidade, transformação, burocracia infernal e de assustadora perda da individualidade. É uma mistura de horror e beleza, que o artista pode celebrar e lamentar”.

SENSAÇÃO DE MORTE
Toda essa conversa é muito bonita, mas estamos num período – janeiro = férias = longas esperas – em que aeroportos podem se transformar no pior dos pesadelos, aquele concreto calvário entre o início da viagem e a transformação sonhada, tal qual já falamos. Então, qual seria a dica de Botton para lidarmos com tamanha tensão?

“Aeroportos sempre nos aproximam da possibilidade da morte – e essa sensação consciente ou semiconsciente tem a força de nos libertar de nossas inibições e, de certa forma, de fazer o amor potencialmente mais possível, porque nos deixa frágeis e reflexivos. Quando nos libertamos dos nossos hábitos diários e nos deparamos com nossa mortalidade, ficamos mais abertos ao encontro com o estranho e o inusitado. Pessoas que vivem casamentos frustrados e sem amor por décadas vão dizer inesperadamente coisas românticas em aeroportos. A perspectiva de um desastre ou de uma perda ou de um abandono pode fazer maravilhas para um relacionamento que não anda muito bem das pernas”, filosofa, fazendo-nos crer no aeroporto como utensílio afrodisíaco. Quem diria?

Um dos pontos fortes do livro de Botton é a descrição (e ele é perfeito em descrever cenas aparentemente banais) da despedida de um casal, que se beijava com um grau de desolação comovente. Enquanto a namorada deixava seu amado para a imensidão da sala de embarque, Botton escrevia quase como quem suspirava: “Os transeuntes demonstravam cumplicidade. Até eu já começava a sentir saudades dela. Podíamos estar prontos para oferecer nossa solidariedade, mas na verdade há razões mais fortes para querermos cumprimentá-la por ter um motivo tão contundente para se sentir triste. Se fosse capaz de ter distanciamento em relação à sua cena, talvez ela reconhecesse que essa despedida teria sido um dos pontos altos de sua vida”.

Apesar de focar na humanização dos aeroportos, uma visão, ao menos, aproxima Botton dos teóricos do “não lugar”: “De certa forma, os aeroportos têm mais em comum uns com os outros do que com seus países de origem. Se houvesse a possibilidade de termos uma coisa chamada ‘país internacional’, ele seria ‘A Nação Unida dos Aeroportos’. Seja no Brasil ou na Rússia, na Grã-Bretanha ou na Austrália, sabemos o que encontrar num aeroporto. O charme real deles está no fato de nos ajudarem a colocar em perspectiva a ideia de uma alternativa para a vida: eles nos relativizam. Eles nos fazem sentir aqui, agora, sejam 10 da manhã ou três da madrugada, lembrando-nos ainda que, em algum lugar do mundo, alguma coisa está nos esperando. E mais: eles nos ajudam a lembrar que o mundo lá fora é mais estranho, excitante e variado, ótimos lembretes para quando estamos prestes a ser consumidos pelo tédio, que é a rotina”.

A temporada no aeroporto parece ter inspirado Botton a voltar a escrever sobre o tema que marcou o início da sua carreira e que, de certa forma, percorre todos os seus livros, como um rio subterrâneo: o amor. “A gente nunca pensa ou diz o suficiente sobre o amor, por isso quero voltar a esse tema brevemente. Talvez escrever sobre o casamento e o que ele significa hoje”, adiantou.

Não deu para concluir a entrevista sem perguntar o que o escritor fazia nos momentos em que o tédio batia forte durante sua “internação” no Heathrow: “Eu procurava um brasileiro para conversar. Os brasileiros em geral têm as melhores conversas, e o Heathrow está cheio de brasileiros ótimos”. 

SCHNEIDER CARPEGGIANI, jornalista, mestre e doutorando em Teoria da Literatura.

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