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Folk rock: Um velho trovador que não enferruja

Aos 40 anos de carreira, o músico Neil Young inova ao lançar 'Le noise', CD gravado apenas com sua voz e guitarras repletas de efeitos

TEXTO Débora Nascimento

01 de Novembro de 2010

Neil Young

Neil Young

Foto Divulgação

Há muito tempo, existe um consenso entre fãs e críticos de que Neil Young concebe álbuns espetaculares independentemente de serem acústicos ou elétricos, de folk ou de rock. No entanto, como se trata de um artista dono de uma imensa discografia de cerca de 60 títulos lançados (contando com os discos solo e os gravados com as bandas Buffalo Springfield e Crosby, Stills, Nash & Young), há alguns títulos que conseguem dividir a opinião do público. Talvez esse seja o caso do recente Le noise, CD que vem coroar os 40 anos de carreira fonográfica do legendário compositor canadense, que completa 65 anos no dia 12 de novembro.

Curiosamente, o título é uma corruptela para o sobrenome do produtor musical do CD, Daniel Lanois, nome que esteve por trás de álbuns como o premiado Time out of mind (1997), de Bob Dylan, e os arrasa-quarteirões do U2 The joshua tree (1987) e Achtung baby (1991), ambos coproduzidos com Brian Eno. Neil Young entregou a Lanois um desafio: produzir um disco cujos instrumentos seriam apenas um violão customizado (que aparece em duas músicas) e duas guitarras, uma Les Paul (na música Hitchhiker) e a semiacústica branca Gretsch, do fim dos anos 1950, usada em quase todas as faixas.

Qual foi a solução de Lanois? Em vez de ir a um estúdio tradicional, levou o músico para sua casa em Silver Lake, Los Angeles, e lá gravou as composições como se fossem para um álbum ao vivo. Usou diversos efeitos (reverbssamples, timbragens variadas) nos instrumentos e na voz do cantor. Dessa forma, conseguiu preencher os “fantasmas” da bateria, do baixo, dos teclados, criando um resultado diferente, interessante e fluente, e revertendo os possíveis perigos da proposta inicial, que poderia render o clichê de um “disco intimista”.

POESIA CANTADA
Mas, claro, o produtor também tinha um trunfo: o próprio Neil Young. O mestre, autor de cerca de 350 composições (Bob Dylan tem 462 lançadas) e uma das lendas vivas da música, compôs um bom punhado de algumas das mais belas canções já ouvidas, como Old manHarvest moon, Ohio e The needle and the damage done, todas nascidas de sua sensibilidade apurada para traduzir em poesia cantada os mais variados aspectos da vida, como violência, morte, amizade e, principalmente, amor.

Em Le noise, o artista apresenta oito novas composições, que tendem mais para o folk rock, emolduradas por sua característica melódica de tom campestre, com perceptível encadeamento de acordes já presentes em sua obra. A veia de observador do tempo e das atitudes humanas continua certeira e deságua na interpretação melancólica e lírica de sua voz anasalada e de frágil falsete.

A partir da primeira faixa, Walk with me, expõe como se sente hoje no mundo (“I lost some friends/(...) I miss the old friendship”), com a perda de pessoas queridas – uma delas, o guitarrista Ben Keith, antigo colaborador do músico, que faleceu de um ataque cardíaco, em julho, na casa de Neil. Em Sign of love, demonstra toda a compaixão e empatia que sente pelas pessoas, sejam próximas ou não (“When we both have silver hair and a little less time, but there still are roses on the vine/ You can take it as a sign of love”).

O artista, que, em 2006, lançou o disco Living with war, no qual atacara o governo Bush com músicas como Let’s impeach the president, retoma o tema da guerra em Love and war (tente não se emocionar quando ele canta a frase “Daddy will never come home”) e em Angry world (“It’s an angry world for the businessman and the fisherman”). Também dedica duas das mais belas canções do CD,Peaceful valley boulevard e Rumblin’, para lamentar, com a pertinência de homem do campo, as transformações sofridas no meio ambiente (“I can feel the weather changing/ I can see it all around”).

Uma das mais contundentes é Hitchhiker, balada que faz uma espécie de resumo sobre o mergulho no mundo das drogas, mas com final redentor, no qual credita sua sobrevivência aos filhos e à esposa Pegi (que integra sua banda country). A melodia aparece em seus shows desde o início dos anos 1990, mas agora ganhou letra definitiva, como uma carta de agradecimento de alguém com consciência de sua finitude – principalmente depois que descobriu, em 2005, a existência de um aneurisma potencialmente fatal no cérebro.


Imagem: Divulgação

Nos dias em que esperou por uma intervenção cirúrgica, o cantor ficou tão abalado com a possibilidade de perder a vida, que compôs e gravou, em 10 dias, Prairie wind, o melhor de seus oito álbuns de estúdio desta década. Em seguida, fez o primeiro show da turnê na cidade do country, Nashville (Tennessee). O espetáculo foi filmado pelo diretor Jonathan Demme (O silêncio dos inocentes e Stop making sense, do Talking Heads), no documentário Heart of gold (2006). Vale lembrar que Young já havia arregimentado o cineasta Jim Jarmusch para registrar suas músicas com sua banda de rock Crazy Horse, no imperdível Year of the horse (1997).

QUATRO DÉCADAS
Le noise é o 45º disco dessas quatro décadas de carreira solo de Neil Young, que teve momentos memoráveis, como os álbuns Everybody knows this is nowhere (1969) e After the gold rush (1970), aclamados pela crítica. Nesses anos, o músico colocou-se em definitivo na história da música ao integrar o grupo Crosby, Stills & Nash. Acrescido de Young no final do nome, o quarteto lançou, entre os cinco discos, o clássico Déjà vu (1970). Em 2006, houve uma reunião do supergrupo na turnê Freedom of speech, e Neil Young fez questão de ser o diretor do documentário CSNY: Déjà vu,assinando como Bernard Shakey.

O sucesso de Harvest (1972) torna Young uma megaestrela do folk rock – isso contraria o arredio artista, que deixa de tocar, a partir de então, e por mais de três décadas, o hit do LP, Heart of gold. Nesse mesmo ano, a morte de dois amigos, o guitarrista Danny Whytten (para quem fez The needle and the damage done) e o roadie Bruce Berry o levam a um longo período depressivo, com imersão nas drogas e no álcool. Dessa época nascem álbuns pessimistas, como Time fades away (1973), Tonight’s the night (1973) e On the beach (1974).

Esse clima nebuloso é interrompido com Zuma (75) e Comes a time (1978), que traz o único sucesso radiofônico de Neil Young no Brasil, Lotta love. No entanto, nos anos 1980, o compositor desenvolveu uma carreira confusa, gravando álbuns de música eletrônica, rockabilly, clássicos do country e blues.

Por conta da má repercussão desses lançamentos, em 1983, o selo Geffen o processou sob a acusação de intencionalmente fazer discos ruins, mas perdeu a ação judicial, tendo que indenizar o artista em US$ 21 milhões. E o empresário David Geffen ainda se viu obrigado a pedir desculpas ao músico, para que permanecesse no seu cast.

O álbum Freedom (1989), então, o traz de volta ao panteão dos grandes artistas do século 20, e os discos seguintes Unplugged (1993), Sleeps with angels (de 1994, dedicado a Kurt Cobain) e Mirror ball(de 1995, com o Pearl Jam) popularizam seu nome entre a “Geração MTV”.

DISCOGRAFIA DIFUSA
A discografia de Neil Young sofre de alguns atropelos. Por exemplo, até os anos 1990, muitos de seus discos só podiam ser ouvidos no Brasil através de importação. No final da década, a Warner Music anunciou o lançamento de toda a discografia do cantor. No entanto, nas lojas brasileiras apenas alguns títulos passaram a estar disponíveis e, depois, muitos desapareceram de catálogo. Em 2003, o LP On the beach (1974) foi finalmente lançado em CD, mas agora está esgotado no país.

No mercado americano, foi lançado, no final do ano passado, Neil Young archives, com diversos títulos. Um deles é Performance series, uma reunião de gravações de shows, mas que chegou às lojas pelo volume 2, seguido pelos números 3, zero e 12. Muito estranho. Ainda não há previsão de sua chegada ao Brasil.

As idiossincrasias do músico também lhe causam confusões, como no conturbado caso que envolveu o seu biógrafo, o jornalista Jimmy McDonough, a quem concedeu longas entrevistas durante seis anos. Quando finalmente o livro estava pronto, mudou de ideia e não quis mais publicá-lo. O escritor, então, processou-o e conseguiu lançar Shakey, que relata as esquisitices e paranoias desse artista que teima em não enferrujar. 

DÉBORA NASCIMENTO, repórter especial da revista Continente.

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