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Vovó

TEXTO José Cláudio

01 de Outubro de 2010

Fotos Álbum de família

A gente não chamava ela de vovó (com perdão do português Ir. Eugênio, meu professor de português no Marista, pelo atentado à gramática mas, vamos e venhamos, “a chamava” não dá mais). Para todos os netos espalhados por Sirinhaém, Camela e Ipojuca o nome dela era Mãe Joquinha. (Tenho uma sobrinha-neta afim nascida e criada na Espanha, embora os quatro avós brasileiros, lusófona desde criança, não consegue dizer, nem distingue, “vovô” de “vovó”; seu aparelho auditivo só registra “ô”; limitações da língua de Dom Quixote.) No meu livrinho, livrinho mesmo, sob todos os aspectos, mais um registro de fatos diversos, Ipojuca de Santo Cristo, não butei nada sobre meus avós (depois que vi num ex-voto antigo, aqui mesmo nesta revista, numa bela caligrafia de letras caudatas, butou, resolvi adotar este nosso patrimônio, mesmo porque, sempre que vou escrever, fico em dúvida se é com o ou com u).

Hoje mesmo me lembrei de Mãe Joquinha. Acho que, por forçá-la muito na pintura, no fim da tarde estava sentindo a vista escurecida. Mãe Joquinha vivia dizendo que estava com a vista escurecida. Lembro ela tentando enfiar a linha na agulha, seus polegares parecidos com os meus. Vejo seus dedos ágeis no jogar dos bilros, às vezes com uma mão só (por que não se usa mais “ũa”, como Altamiro Cunha, o último a fazê-lo?) enquanto a outra trocava, com rapidez incrível, os alfinetes em cima da almofada (como é, Cacilda Matias, encontrou na internet o soneto: “...Nena chora/fazendo sua renda de almofada”?).

Eram meus avós maternos Cândido Miguel Teixeira Pinto, mesmo sobrenome do nosso primeiro poeta Bento mas sem as mesmas prendas, nem as boas nem as más (será que sou descendente?), Vovô Cãido, e Joana Graciana de Albuquerque Pinto, Mãe Joquinha, belos nomes, em ambos os casos e que meu pai resumiu num modesto Silva, apesar de nome do nosso atual presidente e do ilustre pintor Dom Diego Rodríguez da Silva y Velázquez, por conta de sua mãe galega. Mas eu poderia me chamar José Cláudio de Albuquerque Teixeira Pinto da Silva, pintor ainda por cima se merecesse o apodo, mesmo que fosse pintorzinho, como o do italiano Pinturicchio ou o espanhol Ribera conhecido na Itália como Spagnoletto, ou Masaccio, Tomasão em italiano, todos maravilhosos artistas: mas quem sou eu, em vez de estrela pobre vagalume.

Vovô Cândido, inda alcancei com uma vendinha mínima na rua de Camela e uma casa respeitável, frontão bonito ao que me lembre, porta e duas ou três janelas, lá no alto da calçada junto da Igreja de Sto. Antônio, onde o poeta Domingos de Albuquerque, de Ipojuca, viu o dente do demônio na boca de Cazuzinha (“Meu Deus que sorte essa minha/na festa de Santo Antônio/ver o dente do demônio/na boca de Cazuzinha”), senhor do Engenho São Paulo.

Ele sentava de noite na calçada e ficava olhando as moças que passavam no leito da rua, como se andava antigamente quando não havia, ou quase não havia, carro. Flagrado por Mãe Joquinha, fez que não estava enxergando direito e perguntou: “Joquinha, quem é que vai ali que não estou enxergando direito?” Mãe Joquinha sabia que ele sabia, até demais, de quem se tratava...

Tinha a voz cava, quase afônico, no que lembrava a de um de seus filhos, Zezé, de quem herdei o apelido. Como se chamaria esse meu tio, se havia outro filho chamado José, José de Albuquerque Pinto, de apelido Zé Pequeno? Quem poderia me dizer, se todos já se foram? Perguntei a minha prima Nelma, que mora em Camela. Ela foi ao cartório de Camela e descobriu: José de Albuquerque Pinto Irmão. É porque todo menino que nascia laçado tinha que se chamar José.

Tiveram seis filhos e seis filhas. Zezé, tocador de violão, que morreu solteiro ainda moço, de tuberculose, em Camela; Manoel, que vim a conhecer em São Paulo, trabalhando ele como servente de estação na Sorocabana até aposentar-se, casado com uma “italiana gorda” como na fantasia de um samba que Paulo Vanzolini gostava de cantar: “Vou marcar meu casamento/é por esses dias/é com uma italiana gorda/mas não sei se ela queria/se a gorda não quiser/caso com a magra mesmo/casar com italiana gorda/isso é fantasia”; Filó (Philogônio) que também morreu moço relativamente, casado com Rubenita, ainda hoje professora em Camela; Zé Pequeno, que trabalhou na loja do meu pai Amaro Silva em Ipojuca, casado com Zezé, filha do Sargento Aguiar, delegado de Rio Formoso; Agostinho, o mais velho, que nunca saiu de Camela, casado com Linda, tendo sido barraqueiro do Engenho Aratanji (uma vez, há dez anos ou mais, eu ia com Joca Souza Leão não sei bem para onde, passamos por Camela, vi Tio Agostinho e, como fazia anos que não nos víamos, pedi a Joca para parar o carro, descemos, fomos até ele, cheguei bem junto e, olhando para ele, disse: “Olha, Joca, ele não está me conhecendo”, pensando de fato que ele não me reconhecera, e ele, por resposta, disse o dia do meu nascimento, tanto de tanto de 1932); e Raphael, por obra de quem torci pelo único time até hoje, o Tramways Futebol Clube, camisa verde e preta, ouvi dizer, que não me lembro mais: condutor de bonde, aquele que se pendurava no estribo cobrando as passagens, passando depois a caixa da mesma companhia, falecido aqui no Recife, morando na nossa casa na Rua de Santa Cruz, Boa Vista, até morrer andava cambaleando, “andar de marinheiro” diziam, fazendo um gesto como a querer segurar-se nos balaústres do bonde; e as filhas: Luizinha, a mais velha, casada com Manoel Caixeiro, como era mais conhecido Manoel Amâncio, comerciante em Porto de Pedras, na beira do Rio Sirinhaém; Gasparina, casada com Antônio Lourenço em segundas núpcias dele, comerciante em Camela; Edith, casada com José Dias, fiscal do Engenho São Paulo quando eu ia passar férias em casa dele, depois no Engenho Burarema, em Cucaú, que me serviu de inspiração para o conto Novamente um galope, publicado então na revista A Cigarra quando eu tinha uns 18 anos; Ramira, minha mãe; Otília, casada com Neto (pai de Nelma) filho do primeiro casamento de Antônio Lourenço de Tia Gasparina; e Maria José, a caçula, casada com o dentista Antônio Bandeira.

Vovô Cândido era bem moreno, da pele fina e cabelo bom, afilado, podendo ser confundido com um indiano, estatura mediana, mais para magro. Morreu idoso assim como Mãe Joquinha, esta de boa estampa, mais para alta para ser mulher, perna grossa, sem ser gorda: lembro-me dela como uma mulher comprida, talvez porque usasse saia quase arrastando, bem morena, cara amulatada, cabelos de escadinha que usava longos. Atribuo a ela meu gosto pela arte, e também a minha mãe que bordava a mão. Lembro umas rosas art déco num lençol branco feitas com linha meteoro mesclada, como as que ornam a capa do folheto Discrição do beijo, aliás “descrição”, como na primeira estrofe: “Leitor eu peço desculpas/se a si não agradar/mas quero sua atenção/para poder relatar/porque este é meu desejo/dar a descrição do beijo/para quem apreciar”.

O nome da mãe de Mãe Joquinha, minha bisavó pois, era Mãe Dona, casada com Manoel Rubina, que tomava conta da Detenção e morava lá dentro, no local, aqui no Recife. Informação de Nelma.

Mãe Joquinha deve ter sido o primeiro ser humano que vi. Assim que acabei de nascer, às cinco da tarde, em Ipojuca, pegado pela parteira Mãe Vigu, que me entregou a Mãe Joquinha ao seu lado, a luz do motor acendeu e eu tomei um grande susto, concluindo Mãe Joquinha que minha vista era boa. 

JOSÉ CLÁUDIO, artista plástico.

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