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Turquia: Sobre as águas de Istambul

Com mais de 2,5 mil anos de história, cidade que liga a Ásia à Europa atrai visitantes em busca de um lugar que seja familiar, mas diferente

TEXTO E FOTOS ANA LIRA

01 de Outubro de 2010

As mesquitas contam com áreas exclusivas para mulheres

As mesquitas contam com áreas exclusivas para mulheres

Foto Ana Lira

Istambul, à primeira vista, deixa o visitante com a impressão de estar num lugar conhecido. A diversidade cultural, arquitetônica e os jeitos variados de vestir e de comportamento não a diferem de qualquer outra metrópole do planeta. Essa sensação gera a primeira inquietação da viagem: será que ela esconde os seus segredos por meio de códigos?

Essa desconfiança impele o visitante a sair do roteiro tradicional e buscar referências que traduzam melhor a complexidade da única cidade situada entre dois continentes. A trajetória de Istambul é marcada por ocupações em mais de 2,5 mil anos de história. Foi batizada de Bizâncio pelos gregos, quando fundada no século 8 a.C. Nove séculos depois, nas mãos de Constantino I, tornou-se sede do Império Bizantino sob o nome de Constantinopla.


Localizado no lado asiático, Üskudar é um dos portos que compõem a paisagem da cidade 

Em seguida, com a divisão do império em oriental e ocidental, manteve-se como capital no Oriente até ser conquistada pelos turcos otomanos em 1453. Nesse período, a população já se referia à Constantinopla como istim´bolin ou istam´bolin que significa “na cidade” ou ir “à cidade”. O local era o espaço de comércio, urbanização e cultura. A cidade por excelência.

Com a queda do Império Bizantino, e a chegada do Império Turco-Otomano, a cidade passou a ser um dos principais redutos muçulmanos do mundo. A tradição religiosa foi mantida, mesmo com o fim do domínio turco-otomano e a instauração da República, em 1923. Constantinopla, no entanto, só foi batizada de Istambul, definitivamente, em 1930.

Essa trajetória histórica tem um impacto no cotidiano da cidade e no papel central que ela ainda ocupa nas relações entre o Oriente e o Ocidente. É tanto que, em junho deste ano, as ruas da cidade se dividiam entre protestos contra a resposta de Israel aos ativistas que levavam ajuda humanitária para a Faixa de Gaza e os eventos do circuito cultural que celebravam a escolha de Istambul como Capital Europeia da Cultura.


Fachada da última mesquita que foi construída durante o Império Otomano, à beira do Chifre de Ouro

A melhor forma de olhar a cidade talvez seja não pela perspectiva de “caldeirão cultural” e, sim, como um lugar de conexões. É uma metrópole construída entre a Ásia e a Europa, dividida pelo Estreito de Bósforo, que une o Mar Negro (ao norte) ao Mar de Mármara (ao sul), interligada por duas pontes intercontinentais e à espera da finalização do Túnel Ferroviário de Marmaray, que passará por baixo das águas do Bósforo e será mais uma ligação entre os lados europeu e asiático da cidade.

Tudo nela remete a escolhas e qualquer roteiro, por maior que seja, sempre traz a sensação de que é impossível conhecê-la por completo. Istambul é uma cidade-labirinto. Por onde entrar e como sair? O que se quer que a cidade revele? Pensar nisso ajuda a traçar rotas. O segundo passo é conhecer o sistema de transportes para saber como se locomover. Afinal,numa região metropolitana – ocupada por cerca de 12 milhões de pessoas, parte delas falando parcialmente o inglês, a viagem pode virar um eterno pedido de informação – e, em Istambul, isso pode significar horas até chegar ao destino escolhido.


As mesquitas no centro de Eminönü atraem visitantes que atendem às chamadas para as orações, marcadas cinco vezes ao dia

SOBRE AS ÁGUAS
A vantagem, contudo, é que a cidade tem um sistema de transporte fluvial eficiente. Por meio das embarcações que circulam pelo Estreito de Bósforo, Mar de Mármara e pelo Chifre de Ouro, é possível chegar a vários pontos. O roteiro mais comum é feito entre Haydarpasa, Kadiköy e Usküdar, no lado asiático, para os portos de Eminönü e Karaköy, do lado europeu, mas há ferrys que circulam de norte a sul no Estreito de Bósforo durante o dia e boa parte da noite.

Haydarpasa abriga ainda uma das mais bonitas e centenárias estações de trem da cidade, desenhada pelos arquitetos alemães Otto Ritter e Helmut Cuno. Ela é roteiro de viajantes, tanto pela beleza quanto por levá-los para outras regiões da Turquia – como a Capadócia – e do Oriente Médio, a exemplo do trem noturno que segue para Teerã, no Irã. Saindo da estação, é possível encontrar, nas margens do Bósforo, restaurantes, cafés e quiosques que vendem pratos da culinária da região, muitos deles baseados em carne de carneiro e variados pães e peixes, além dos deliciosos doces turcos.

É comum beber chás, cafés e sucos, tanto na espera pela embarcação quanto durante a travessia. Os barcos possuem lanchonetes e garçons que circulam vendendo çay (chá preto), su (água) e lanches leves e rápidos. É com os garçons que se aprende boa parte do vocabulário gastronômico usado nas ruas de Istambul, e vê-los trabalhar é um capítulo à parte da experiência na cidade. As viagens de barco podem durar de 20 minutos à 1h30, dependendo da rota, e são ideais para aprender mais sobre a cultura local.


Com um sistema de transporte fluvial eficiente, embarcações fazem a travessia entre o lado asiático e o europeu de Istambul

Observar como as mulheres compõem o visual, por exemplo, é encontrar elos entre a história da cultura têxtil oriental e da ocidental. A variedade de padrões e estampas e as referências à produção artesanal de tecidos estão nos sobretudos, calças boca de sino, blusas de manga comprida, botas e tênis All Star. A indústria da padronização também é forte em Istambul, mas uma cidade que é rota de comércio de estampas de tecidos há vários séculos conhece outras fontes e sabe bem como deliciar os olhos dos visitantes.

ANZOL ALUGADO
Basta descer em Eminönü e circular pelas ruas atrás do Mercado das Especiarias para ver um pouco do que é oferecido nesse setor. Se o visitante for exclusivamente para comprar tecidos, pode pesquisar antes por distritos especializados. Quem não estiver com esse foco, pode comprar na rua ou nos mercados, mas é fundamental pesquisar preços, porque Istambul é sinônimo de negociação e o mesmo item pode custar bem menos algumas lojas depois.


O lado leste, onde estão localizadas as Ilhas dos Príncipes, é usado para veraneio

Os principais mercados, como o Grand Bazaar, e outros pontos atrativos da cidade funcionam no horário turístico, sem deixar margem para uma pesquisa mais sossegada, por exemplo, no comecinho da manhã, como ocorre nos mercados brasileiros, que abrem às seis da matina. O jeito é buscar outros circuitos da cidade, como as alamedas de Beyoğlu e Taksim e os arredores de Gálata, onde fica a famosa ponte que liga as regiões leste e oeste do lado europeu.

A Ponte de Gálata foi construída sobre um estuário situado entre o Bósforo e o Mar de Mármara, conhecido como Chifre de Ouro. Além de cartão-postal da cidade, ela é famosa por receber todos os dias profissionais e amantes da pesca – além de visitantes que alugam anzóis para se divertirem um pouco com a família. A tradição é tão forte, que, ao seu redor, fez surgir um circuito de gastronomia baseado na venda de peixes. O público observa da pesca à degustação apenas atravessando a ponte.

Enquanto comem, as pessoas percebem o intenso movimento dos portos de Eminönü e Karaköy, e ouvem as chamadas para as orações, que ocorrem cinco vezes ao dia, nas mesquitas dos arredores. Uma das mais visitadas é a Yeni Camii, que foi construída à beira do Chifre de Ouro. Não é famosa e adorada como as mesquitas Azul e Santa Sofia, que ficam em Sulthanamet, mas foi privilegiada pela localização e por ter sido a última mesquita construída durante o Império Turco-Otomano, o que lhe trouxe também o nome de Mesquita Nova.

A Yeni Camii faz parte do mesmo complexo de construções que hoje agrega o Mercado das Especiarias. Era comum as mesquitas abrigarem serviços para a comunidade religiosa, de modo que, junto com o templo, foram construídas duas fontes públicas, casa de banhos, hospital, escola, mercado e o mausoléu, que guarda as tumbas de seis sultões do Império Turco-Otomano e de Turhan Hadice, o qual terminou de erguer a mesquita, durante o império de seu filho Mehmet IV. As mesquitas podem ser visitadas durante o dia, mas nos horários sagrados de oração apenas muçulmanos têm acesso permitido.

No entorno da Yeni Camii, os visitantes costumam ainda degustar sorvetes, roscas, doces e milho cozido. Vendem-se bacias com grãos crus para atrair as dezenas de pombos que rodeiam a mesquita. Fazer fotos dos filhos correndo entre os animais é rotina das famílias que visitam o local. Elas também apreciam a arquitetura da mesquita, os detalhes das fontes e do grande arco de pedra. Este, construído sobre os dormitórios existentes numa viela que leva ao centro de Eminönü e à estação de trem de Sirkëci, ponto de partida de quem deseja visitar as Muralhas de Constantinopla.


A Ponte de Gálata é famosa por receber todos os dias profissionais e amantes da pesca, além de visitantes que alugam anzóis para se divertirem

As muralhas podem ser vistas tanto por via terrestre quanto marítima, uma vez que foram erguidas ao longo da costa de Mármara como estrutura de defesa da cidade. A primeira construção remonta ao período Bizantino, mas terremotos e intempéries que, de vez em quando, assolam a Turquia já foram responsáveis pelo desabamento de algumas de suas partes, embora cerca de seis quilômetros de sua extensão ainda estejam preservados.

Visitando o acervo do museu situado na Fortaleza de Yedicule, percebe-se com mais clareza o poder que as muralhas representavam para a cidade, bem como a crueldade com que eram tratados os inimigos dos impérios: as câmaras de tortura e execução continuam intactas. De cima da edificação, ironicamente, tem-se uma das mais incríveis vistas de Istambul. Olhando para baixo, contudo, vê-se o abandono das áreas ocupadas pelos imigrantes que ainda vivem na cidade.

BANHO DE MAR
Se, na costa oeste do Mármara, as muralhas convidam à reflexão, o lado leste oferece o deleite da beira-mar da região de Adalar, onde estão localizadas as Ilhas dos Príncipes. O distrito tem sete ilhas e é usado para veraneio. O melhor local de banhos fica a uma hora de ferry. Em terra, é preciso caminhar ou alugar charretes porque as leis de preservação não permitem o uso de veículos motorizados. O lugar remete a um vilarejo bucólico e as casinhas em nada lembram os milhares de edifícios e o caos que dominam as áreas mais populosas de Istambul.

Além dos banhos nas Ilhas dos Príncipes, os visitantes também apreciam o cruzeiro pelo Bósforo, que leva a áreas da cidade com edificações suntuosas, outras abandonadas e algumas que foram restauradas para abrigar centros culturais, como o Museu de Arte Moderna, em atividade desde 2004. Este ano, entre as ações da Capital Europeia da Cultura para as Artes Visuais, havia uma exposição coletiva que debatia possíveis soluções para o desequilíbrio econômico e social – um tema que tem sido bem-discutido em Istambul.

A experiência com crises de moradia, abastecimento de água e transporte público, que debilitaram Istambul no passado, ajudaram a metrópole a perceber seus limites. Embora seja segura para a quantidade de pessoas que nela circula diariamente e tenha estrutura para receber muito bem os visitantes, a cidade-labirinto não pretende ver seu crescimento transformar-se num Minotauro, devorando quem não estiver preparado para enfrentá-lo.

Por seus aspectos mais evidentes – e outros tantos a se descobrir –, Istambul se torna um dos destinos mais instigantes do mundo. Visitá-la leva o viajante do prazer à reflexão: nas travessias de barco, nas performances de músicos em praça pública, nas acaloradas conversas nos cafés ou nas cerimônias religiosas. 

ANA LIRA, jornalista e fotógrafa.

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