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Por que há filmes que teimam em não acabar?

Embora não seja um fenômeno exclusivamente contemporâneo, o recurso do final aberto tem sido recorrente na cinematografia atual

TEXTO Rodrigo Carreiro

01 de Outubro de 2010

Pierre Léaud no encerramento de 'Os incompreendidos' (1959). O diretor deixou seu público intrigado com a cena final do longa

Pierre Léaud no encerramento de 'Os incompreendidos' (1959). O diretor deixou seu público intrigado com a cena final do longa

Foto Divulgação

Você está no cinema, mas nem se dá conta disso. Com as luzes apagadas, mergulhou tão profundamente no universo ficcional, que abstraiu a realidade à sua volta. Como parte da plateia, está absorto na história que está sendo contada. O personagem principal despertou sua empatia; você se importa com ele, sofre junto, torce para que ele alcance seus objetivos. No entanto, antes que isso aconteça, as luzes se acendem. O filme terminou. Suas expectativas não foram saciadas. Naturalmente, você se aborrece e amaldiçoa o que lhe parece apenas um capricho do diretor, ou uma moda narrativa inconsequente: os finais abertos, em que o destino do protagonista ou o desfecho do enredo não são conhecidos por completo. Mas será que se trata somente de um capricho? Será apenas uma moda que roteiristas e cineastas vão acabar deixando de lado num futuro próximo? Ou os finais abertos, que parecem cada vez mais populares, têm uma razão de ser e vieram para ficar?

O filme mais discutido de 2010, A origem (Christopher Nolan), disparou um debate a respeito da onda de finais abertos no cinema contemporâneo. Se você assistiu ao longa-metragem, sabe que a imagem que o encerra, um pião girando em cima de uma mesa, focalizado em close-up, foi pensada estrategicamente pelo diretor e roteirista para plantar uma dúvida a respeito da natureza da realidade daquele momento, para Cobb, personagem de Leonardo DiCaprio. (Aliás, o ato de inserir uma ideia no público espelha a própria encenação ao longo das 2h30 de projeção.) Desde o lançamento do filme, Nolan vem sistematicamente se negando a tirar essa dúvida e a responder se Cobb estava sonhando ou não. Para o criador do filme, a possibilidade de que cada espectador reflita e tire suas próprias conclusões sobre o final enigmático é muito mais rica e interessante do que seria proporcionado por uma conclusão fechada.

RECURSO ANTIGO
Embora possa parecer novidade para muita gente, a técnica do final inconclusivo é antiga. No entanto, por muitas décadas, ela foi relativamente pouco utilizada – sobretudo no cinema, uma mídia de massa – porque o grau de rejeição por parte do público sempre foi historicamente alto. Os finais abertos, aliás, já tiveram um precedente histórico que vale a pena mencionar. Do ponto de vista narrativo, a literatura romântica do século 19 adotou essa técnica de maneira bem mais enfática do que ocorria anteriormente. Romances bem diferentes, como o inglês A volta do parafuso (Henry James, publicado em 1898) e mesmo o nacional Dom Casmurro (Machado de Assis, publicado em 1899), utilizaram essa técnica, em que o autor deixa a cargo da imaginação de cada leitor uma decisão narrativa crucial que a conclusão da obra não encerra.

No cinema, finais abertos foram evitados dentro da estrutura narrativa clássica, que, segundo a pesquisadora norte-americana Janet Steiger, foi consolidada por volta de 1917. Steiger, que sintetizou os principais recursos dessa estrutura narrativa em livro escrito a seis mãos com Kristin Thompson e David Bordwell, afirma que a causalidade – grau de relação de causa e efeito estabelecida entre dois ou mais eventos de uma trama – sempre foi um elemento extremamente importante na dramaturgia cinematográfica. Mais importante até do que na literatura, por causa do caráter mais compacto da narrativa audiovisual, em que os elos que compõem o enredo precisam ser comprimidos em apenas duas horas. É por isso, diz ela, que os filmes com finais ambíguos são bastante raros até a década de 1960, quando uma variação dessa técnica passou a ser praticada na Europa, sobretudo pelos diretores ligados ao movimento da Nouvelle Vague, entre os quais Jean-Luc Godard (Weekend à francesa,Viver a vida) e François Truffaut (o encerramento de Os incompreendidos, com um frame congelado do rosto do ator Jean-Pierre Léaud, permanece até hoje como um dos exemplos mais simples, intrigantes e discutidos de finais abertos).

Recentemente, o filme A origem provocou debate sobre a onda de finais abertos no cinema. Foto: Reprodução

Outro importante teórico do cinema, David Bordwell, aponta a nova onda francesa como marco histórico que impulsionou a poética cinematográfica para um novo patamar narrativo, em que as relações de causa e efeito entre os eventos que compõem a trama são mais frágeis, mais ambíguas, e interpelam constantemente o espectador para que participe de modo mais ativo da resolução das peripécias dramatúrgicas propostas pelos roteiros. A partir daí, os finais ambíguos passaram a se tornar mais comuns, nas mais diversas cinematografias: europeia (os já citados filmes de Godard e Truffaut), norte-americana (2001 – Uma odisséia no espaço, de Stanley Kubrick; O tiro certo, de Monte Hellman; Manhattan, de Woody Allen; Operação França, de William Friedkin; Faces, de John Cassavetes) e em países periféricos como a Austrália (Piquenique na montanha misteriosa, de Peter Weir) e a Polônia (Não amarás, de Krzysztof Kieslowski).

OBJETO DE ESTUDO
Reconhecido como uma técnica narrativa proeminente e sofisticada, o final inconclusivo passou a ser objeto de estudo acadêmico a partir da década de 1990. O primeiro pesquisador a estudar os usos cinematográficos dessa técnica e agrupá-la em categorias foi o professor Richard Neupert, da Universidade da Georgia (EUA), que escreveu um livro sobre o tema. Tomando como base os trabalhos de Truffaut e Godard, ele dividiu os filmes com finais abertos em duas categorias. Da primeira, mais numerosa, fariam parte obras que não oferecem uma resolução satisfatória para a trama, mas procuram fechar o discurso narrativo, apontando com clareza ao espectador o encerramento da fase da vida do personagem principal focalizada no filme. Esse discurso narrativo fechado seria reconhecível para a plateia, ainda que inconscientemente, através do uso de ferramentas como a música e a montagem. A segunda categoria, mais rara, englobaria filmes em que tanto a trama quanto o discurso narrativo permaneceriam abertos a múltiplas interpretações. É o caso de obras como A fita branca e Caché (ambos de Michael Haneke), de alguns episódios do Decálogo (Kieslowski) e do oscarizado Onde os fracos não têm vez (Joel e Ethan Coen).

Um filme que exemplifica perfeitamente a primeira categoria é o já citado A origem. Outros filmes recentes que também geraram debates a partir de finais inconclusivos, e cujo discurso narrativo é claramente fechado, são O profeta (Jacques Audiard), os dramas românticos Antes do amanhecer e Antes do pôr do sol (Richard Linklater), O lutador (Darren Aronofski), Perdido na escuridão(Alejandro Amenábar) e a sua refilmagem americana Vanilla sky (Cameron Crowe). A maior parte dessas obras propõe duas leituras possíveis do final, mais ou menos como fazia o antigo programa da TV Globo Você decide: há duas possibilidades de interpretação das cenas de encerramento, e o espectador pode optar por uma delas.

De novo, A origem é um exemplo paradigmático: o pião girando permite ao espectador pensar que Cobb está sonhando ou não. O filme não esclarece esse ponto. Fãs integrantes de fóruns e blogs de cinema espalhados pela internet esquadrinharam minuciosamente o longa-metragem, buscando pistas que pudessem oferecer uma resposta definitiva à questão, mas tal resposta não foi encontrada, porque o diretor, Christopher Nolan, esperava que esse boca a boca pós-sessão pudesse alimentar o marketing viral a respeito da obra, aguçando a curiosidade das pessoas e levando mais gente a ver o filme. Em outras palavras, o final aberto também pode funcionar, atualmente, como uma peça de marketing agregada à própria narrativa do filme, algo que nem Truffaut e nem Godard imaginavam há quatro décadas. Coisas do século 21. 

RODRIGO CARREIRO,  jornalista, professor e mestre em Comunicação pela UFPE.

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