Cobertura

Aos Guarani Kaiowá

Apresentações do grupo de rap Brô MCs e do espetáculo 'Mborahéi Rapére – Pelas trilhas do canto' no festival deste ano mostram como o palco é um lugar importante de resistência indígena

TEXTO OLÍVIA MINDÊLO, DE CORUMBÁ*

27 de Maio de 2018

Kaiowás de acampamento de Douradina (MS) apresentaram com o Veraju um musical de cantos indígenas

Kaiowás de acampamento de Douradina (MS) apresentaram com o Veraju um musical de cantos indígenas

Foto Eduardo Medeiros/Fasp/Divulgação

Das questões postas em cena pelo Festival América do Sul Pantanal (Fasp), a indígena mostra-se fundamental, ainda mais quando a programação emerge sob o tema Cultura e cidadania sem fronteiras. No Brasil, o Mato Grosso do Sul está entre os estados com maior quantidade de povos originários, apesar do massacre histórico de etnias como os Guarani Kaiowá, até hoje em luta para permanecer em seu território (quem viu o filme Martírio sabe dessa pancada). Os nossos verdadeiros donos da terra resistem e o palco tem sido também esse lugar de resistência. O festival, então, acolhe essa demanda – e poderia fazê-lo ainda mais.

Um dos exemplos fortes da programação deste ano foi o grupo de rap indígena Brô MCs, que subiu ao palco principal do Fasp na noite da última sexta (25/5), em Corumbá. Em show histórico, mesclaram guarani e português para criar um som que brada pelo direito de os indígenas existirem com dignidade. “Somos gente, não bicho”, gritou Bruno Veron, porta-voz dos Brô, logo no início da apresentação. “E não é índio não, é indígena”, ensinou. O público respondeu com a mesma energia e pulou junto, entendeu o recado, mesmo sem compreender todas as letras, que, por fim, queriam dizer, de muitas formas, exatamente isto: “nós existimos, queremos respeito”. Sabemos bem como a agressividade sonora do rap funciona em discursos contra a violência e as injustiças sociais, e não é diferente no caso dos Guarani Kaiowá vindos de Dourados, a segunda cidade em tamanho e população do MS, depois da capital Campo Grande. No geral, onde há problema, há rap e hip hop como reação. E nessa região do estado, terra do agronegócio, os conflitos são constantes – de assassinato indígena a situações de exclusão social que, não raro, culminam em casos de suicídio nas aldeias.


Apresentação do grupo no Fasp 2018. Foto: Ricardo Gomes/Fasp/Divulgação

Os Brô denunciam questões como essas há 10 anos, tempo no qual os cinco rappers (incluindo uma mulher, Dani Muniz) vêm se apresentando, compondo e gravando juntos. Recentemente, estiveram na Alemanha “para mostrar como indígena é visto no Brasil”, como disse Bruno Veron, e pela primeira vez se apresentaram em um evento grande no próprio estado. “Hoje foi mais uma conquista nossa, acredito que a gente subiu mais uma escada. Para nós, é muito massa de estar ali em cima representando o nosso povo, Guarani Kaiowá; não só o nosso povo, mas de várias etnias existentes no Brasil. A gente está feliz por isso, entendeu? E bastante emocionado, porque é um festival grande e a gente nunca pensou em tocar em um festival grande assim”, comentou o líder do grupo, que começou a ouvir rap pequeno, no programa de rádio Ritmos na Batida, em Dourados. Ele e os companheiros da aldeia Jaguapirú e Bororó começaram a produzir música quando um professor da escola pediu que contassem a própria história de uma maneira criativa. Cerca de dois anos depois, eram os Brô e um CD demo.

Bruno Veron, Brô MCs
O líder do Brô, Bruno Veron, no palco do Fasp 2018.
Foto: Ricardo Gomes/Fasp/Divulgação

Há 10 anos, quando criaram o grupo, Dourados tinha um cenário ainda pior, segundo relato de Bruno à Continente: “Antigamente, acho que o Brô nem existia ainda, o indígena em Dourados era muito malvisto. O indígena não podia entrar numa loja que era barrado. Não podia entrar num restaurante que era barrado. Mas as mesmas lojas que barravam tinham artesanato indígena, cocar indígena. Hoje em dia, acho que mudou, entendeu? Com os MCs levando essas informações pra essas pessoas que não conhecem, mudou muito. Falta muda muita coisa ainda, mas, aos poucos, a gente vai mudando”.

Na sequência da noite, quem subiu ao palco foi o rapper Criolo, de São Paulo, que foi escolhido, em audiência pública, pela população de Corumbá para se apresentar no festival deste ano. No palco, contudo, ignorou os indígenas do Brô, que não foram mencionados por ele e nem sequer fizeram uma participação.

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No dia seguinte, sábado (26/5), outro canto de resistência vindo de Dourados ecoou no festival, desta vez do palco do teatro da UFMS, campus Pantanal, também em Corumbá. Indígenas e não-indígenas apresentaram o espetáculo musical Mborahéi Rapére – Pelas trilhas do canto, encenado pelo coletivo Veraju junto ao grupo de Kaiowás do Okáraguyje Taperendy (na língua do povo, algo como “caminho brilhante para o divino”). Foi o maior grupo vindo ao Fasp 2018: 40 pessoas, sendo 12 do coletivo de Dourados (oito mulheres e quatro homens) e 28 mulheres, homens e crianças indígenas de acampamento em Douradina, distrito de Dourados. “Aqui, apresentamos músicas que apontam para palavras que indicam caminho, lugar, desejo de alcançar algo melhor. O lugar que está faltando, não só para os indígenas, mas muitos povos que estão no mundo”, disse, no palco, Graciela Chamorro, paraguaia-brasileira responsável pela coordenação do projeto, iniciado em 2015 e realizado mesmo a partir de 2016, após estudos, mudanças e aprofundamentos. A montagem tem lotado espaços cênicos deste e de outros estados brasileiros, mas no Fasp, infelizmente não lotou o teatro da UFMS, bem afastado do foco da programação do festival em Corumbá.

No espetáculo, os artistas de Dourados iniciam a apresentação enquanto os indígenas assistem nas primeiras fileiras do teatro – mulheres do lado esquerdo, homens do lado direito, assim se repartem. Tocando, cantando e interpretando canções dos Kaiowá e Guarani, principalmente, mas também dos Mbyá, Deni, Shipibo, Heeni Kuén e Krahô, os não-indígenas rendem homenagem aos saberes dos povos originários em um trabalho cujo ponto de partida é o repertório do canto indígena e o de chegada, um trabalho de releitura que reinventa a ancestralidade pelo caminho cênico dos “brancos”, por isso cheio de riscos e paradoxos, mas sensível e necessário.


Graciele (vestido branco) e integrantes do coletivo Veraju, de Dourados (MS).
Foto: Eduardo Medeiros/Fasp/Divulgação

“Os indígenas sempre cantaram, né? Eles não começaram a cantar com a gente, a gente é que começou a cantar as músicas deles junto com eles. A primeira coisa que eu percebi, quando cheguei à aldeia em 1983, foi que eles cantam e gostam de cantar. E acho que é a coisa melhor que eles fazem. Sempre cantaram, desde o início dos contatos se fala nisso. Então, eles são uma referência. Eu não tenho um livro pronto sobre as músicas deles, tenho de ouvi-los”, explicou a pesquisadora Graciela, ressaltando que quando estudou Música, nunca lhe foram apresentadas as canções indígenas, não eram parte da ementa.

E como encarar esse trabalho sob a perspectiva da apropriação cultural? À indagação da Continente, ela respondeu: “Apropriação cultural é um nome que a gente dá a um processo que sempre existiu. O que é o Brasil? No Brasil, nós podemos dizer que nada é nosso e o que seria nosso nós não cultivamos, que seria o que já existia aqui antes dos colonizadores. Mas eu acho que eu não posso falar assim; o Brasil tem sua própria cultura e essa cultura do Brasil é uma cultura também que se apropriou da cultura europeia, da cultura africana e um pouco da cultura indígena, e ela foi fazendo a sua versão dessas coisas. Então é uma releitura, ela sempre existiu”. Para ela, “existe um estranhamento quando esse processo é novo” e isso aconteceu e acontece dentro do grupo e com os indígenas, o estranhamento é parte do trabalho. “Existem ainda grupos da cena que dizem: ‘Vocês não deviam fazer isso, vocês estão se apropriando e se promovendo em cima da prática cultural indígena. Isso não é certo’. A gente se cala. Eu também não fico à vontade de não fazer nada, porque não se faz, não se conhece. Então, não posso dizer para ti que estou 100% certa de que o que eu faço é o melhor, mas minha vida é curta e eu acho que alguma coisa eu gostaria de fazer. Eu conheço a música indígena desde que eu tinha 24 anos e comecei a mexer com ela, levar ao palco, fazem três anos. Justamente por escrúpulos, porque eu mesma achava que não devia fazer. Mas com os indígenas a gente tem um diálogo muito aberto, mostra para eles o que está fazendo, pergunta se não está agredindo, então esse grupo quer”, argumentou Graciela.

O trabalho do Veraju é verdadeiro, mas obviamente não é como o dos indígenas – e não parece querer ser. Estranhamento é uma boa palavra, porque a arte se alimenta dos estranhamentos. Mas é também espantoso, no melhor da palavra, ver a diferença e a beleza do canto saindo dos próprios indígenas quando sobem ao palco, enquanto o coletivo Veraju assiste – uma troca realizada da metade para o final do musical, quando todos se encontram em uma espécie de toré.

Fazendo esse percurso, o espetáculo cumpre o seu ritual de ajudar a não fazer com que os cantos à nossa ancestralidade desapareçam e, ao fazer isso com a ajuda dos próprios Kaiwoá, contribui para a luta por sua sobrevivência aqui na Terra, geração a geração.

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EXTRA:
Confira um pouco do show dos Brô MCs
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OLÍVIA MINDÊLO é jornalista e editora da Continente Online.

*A repórter viajou a Corumbá (MS) a convite da Secretaria de Cultura e Cidadania do Governo do Mato Grosso do Sul, através da Belmira Comunicação

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