Cobertura

Sobre uma vida pluriamorosa, ou a liberdade do desejo

'Corpo elétrico', primeiro longa-metragem do cineasta Marcelo Caetano, dá sua contribuição ao cinema brasileiro, colocando sua assinatura no debate sobre as relações homoafetivas

TEXTO Júlio Cavani

07 de Agosto de 2017

O ator Kelner Macêdo (dir.) vive Elias, um personagem em busca do amor

O ator Kelner Macêdo (dir.) vive Elias, um personagem em busca do amor

Foto Divulgação

Personagem central de Corpo elétrico, Elias paquera, transa ou quer ficar com pelo menos cinco homens ao longo do filme. Ele não necessariamente deseja desenvolver um compromisso declarado com esses personagens, mas existe amor nas relações, por mais rápidas ou aprofundadas que elas sejam. Em seu primeiro longa-metragem, o cineasta Marcelo Caetano busca transmitir, com leveza, a possibilidade de uma vida pluriamorosa que está além das convenções ou idealizações as quais a sociedade está acostumada a seguir.

"O desejo não pode ser tão determinista", argumentou o diretor em um debate após a exibição do filme no 27º Festival Ibero-Americano Cine Ceará*, na tarde de domingo (6/8), em Fortaleza. Corpo elétrico foi lançado na mostra Bright Future do Festival de Roterdã em janeiro deste ano e entra em cartaz no dia 17 de agosto no circuito brasileiro. Nesta segunda-feira (7/8), uma pré-estreia será realizada no Recife, no Cinema do Museu, com a presença de Caetano e dos atores Kelner Macêdo (Elias), Lucas Andrade e Linn da Quebrada (a artista se apresenta pela primeira vez no Recife, no Coquetel Molotov, dia 21/10).

Apesar de alguns momentos pontuais de angústia (ou ressaca) do protagonista, o filme carrega uma paz que o torna necessário não pelo que afirma, mas pelo que ele é. Os movimentos afetivos dos personagens, afinal, podem ser mais potentes do que qualquer discurso declarado. Esse caminho é expressado tanto nos desdobramentos do enredo fictício quanto no trabalho dramático dos atores e das atrizes, que beira a plenitude da espontaneidade de tão à vontade que eles parecem estar na tela.



Elias trabalha em uma confecção no centro de São Paulo, onde convive com colegas de profissão que são ou se tornam amigos nos horários de folga (em festas, bebedeiras e em uma simbólica praia). A chegada de um bonito novato (interpretado pelo guineense Welket Bunguê, presente também em Joaquim) mexe com a libido de alguns dos trabalhadores e das trabalhadoras da fábrica, assim como cria no público uma expectativa de desfecho romântico que aos poucos será flexibilizada.

Corpo elétrico também se torna especial ao desviar de violências que lamentavelmente predominam nas narrativas cinematográficas como um todo. "Há uma expectativa de vitimização", observou Caetano após a projeção, a respeito da questionável naturalização de "um cinema bárbaro, da morte, da destruição dos corpos e da competitividade entre pessoas".

"A gente tem, no Brasil, um tipo de corporalidade que pode até assustar. Quando exibi o filme na Lituânia, uma pessoa da plateia me perguntou se os brasileiros se encostam e se tocam tanto assim de verdade", contou o diretor.

O Brasil do filme não é assinaladamente um país da homofobia. O ambiente recortado é de carinho. É importante afirmar a identidade gay presente, mas sem que isso se torne uma problemática ativista premeditada ou uma delimitação comportamental (há, inclusive, uma linda cena de celebração de um casamento heterossexual). "Tem uma frase do (Errico) Malatesta que diz que 'a imaginação morre onde se inicia o fatalismo'. Comecei a entender que é desse lugar que eu quero me relacionar", acrescentou o cineasta no debate, onde a questão LGBT não precisou engolir as demais discussões estéticas, políticas e sociais.

Antes de dirigir o longa-metragem, Marcelo Caetano fez alguns curtas (disponíveis na internet) e trabalhou como assistente de direção, produtor de elenco e preparador de atores em filmes como Tatuagem, Mãe só há uma e Boi neon, que possuem estilos bem diferentes e, ao mesmo tempo, já compartilhavam algo da visão de mundo presente em Corpo elétrico.

JÚLIO CAVANI, jornalista, crítico e realizador. Dirigiu os curtas Deixem Diana em Paz (2013) e História natural (2014). Atualmente, é também curador do festival Animage

* O jornalista viajou a convite do festival, realizado de 5 a 11 de agosto em Fortaleza (CE)

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