Cobertura

Dos desvios, rotas e outros ciclos

Viagens interplanetárias, mergulhos subjetivos e reflexões sobre travessias enfeixaram vários dos filmes em competição nesta 29ª edição do Cine Ceará

TEXTO LUCIANA VERAS, DE FORTALEZA*

05 de Setembro de 2019

Marco Nanini e Denise Weinberg em cena de

Marco Nanini e Denise Weinberg em cena de "Greta", de Armando Praça

FOTO Aline Belfort/Divulgação

Em uma semana, o 29º Cine Ceará exibiu dezenas de produções, trouxe a primeira sessão no Brasil da obra que representará o país na disputa por uma indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro, abriu espaço para curtas e longas-metragens e propiciou – tanto para realizadores como para os jornalistas presentes em Fortaleza – uma imersão não apenas no cinema em si, mas nos meandros reflexivos que dele podem resultar. De imediato, um signo que se fez forte em boa parte das narrativas foi o deslocamento. A ideia de uma jornada, ou mesmo de um atravessamento, esteve recorrente nos filmes exibidos no Cinema São Luiz.

Rotas, desvios e outros ciclos surgiram sob prismas diversos. É como se, com as reviravoltas da atual temporada da novela Brasil 2019, o próprio país parece ter saído ainda mais do eixo e os filmes acolhessem esse convulsionado estado de espírito, muito embora saibamos que suas origens remontam a eras mais tranquilas no horizonte sócio, político e cultural do país. Tomemos Greta, longa de estreia do realizador cearense Armando Praça, como exemplo. Último filme exibido na mostra competitiva ibero-americana, vindo de apresentações em festivais como Guadalajara e Berlim, terminou consagrado na cerimônia de premiação: levou os troféus de melhor longa, diretor e ator para Marco Nanini (veja relação completa dos filmes premiados aqui). Trata-se de um projeto – com selo da produtora pernambucana Carnaval Filmes – que passou uma década em gestação.

Armando Praça, à frente de uma equipe enorme que subiu ao palco para apresentar sua adaptação para a peça Greta Garbo quem diria acabou no Irajá, do dramaturgo pernambucano Fernando Melo, foi sincero: “Quando comecei a pensar em fazer esse filme, há 10 anos, jamais imaginei que estaria lançando nesse contexto. Mas acredito no que faço, como diretor e roteirista, e acredito em olhar e compartilhar meu ponto de vista sobre personagens marginalizados. Parto de duas premissas: a primeira é que ninguém escolhe ser marginalizado, a segunda é que nada que é humano é estranho”.

Muitos aplausos para o diretor, mais ainda quando Greta terminou. A plateia atendeu à convocação que Praça e equipe fizeram – “abram seus corações, sem reserva, para Pedro, Daniela, Jean”. No enredo, Marco Nanini interpreta Pedro, um enfermeiro homossexual que se envolve afetivamente com Jean (Demick Lopes), um paciente que chega esfaqueado no hospital público onde ele trabalha e onde ele batalha por uma vaga para Daniela (Denise Weinberg), a sua amiga travesti. “Travestir-se”, nos diz o dicionário Houaiss, significa “vestir (alguém ou a si própriode modo a aparentar ser do outro sexo ou de outra condição ou de outra idade”.

No fundo, Pedro sonha em ser outra pessoa, da mesma forma que Jean e Daniela almejam outro futuro, uma outra realidade. Essa bifurcação entre o que somos e o que queremos ser, onde estamos e para onde queremos ir, é matizada com delicadeza, erotismo e desassombro por Armando Praça em Greta e com a leveza da comédia, e uma homenagem à ficção científica, pelo jovem diretor cubano Arturo Infante em A viagem extraordinária de Celeste Garcia, outro título que esteve em competição. Na Havana atual, Celeste (Maria Isabel Díaz) é uma viúva que trabalha em um planetário e tem um cotidiano a oscilar entre o trivial e o modorrento até deparar com a possibilidade de uma jornada interplanetária – os seres extraterrestres do planeta Gryoka já vivem entre nós!. Ela decide mudar de vida, o que no seu caso significa deixar não apenas o filho, a irmã e as lembranças de um casamento infeliz mas também o próprio planeta Terra.
 Maria Isabel Díaz em A viagem extraordinária de Celeste Garcia. Foto: Divulgação

Celeste, pois, larga tudo para se submeter ao treinamento para embarcar na nave Gryoka. Fugir de Cuba na ficção espelha o desejo de fugir de Cuba na realidade? “Sinto que tudo que fazemos aqui em Cuba pode sempre ser interpretado como uma metáfora, por esse viés político também, já que existem as questões relacionadas ao bloqueio e à própria vida na ilha”, explica Infante, “mas a verdade é que eu fiz o filme que gostaria de ver, pois sempre fui fã de películas de ficção científica, como E.T. e Cocoon. Queria trazer esse universo mas com a força de uma protagonista feminina”, complementou o diretor à Continente.

Brincando, ele disse que boa parte do orçamento de US$ 200 mil, amealhados em uma coprodução com a Alemanha, foi gasta nos efeitos especiais, que de fato nos transportam ao firmamento e ao desejo de mudança, porém em A viagem extraordinária de Celeste Garcia a transformação que mais importante tem menos a ver com alienígenas e mais a ver com subjetividade e autoconhecimento. “Celeste está o tempo todo querendo ir embora, talvez sem saber que a jornada mais importante que ela tem que fazer é para dentro de si mesma. Gostamos de achar que a felicidade está em deixar tudo para trás, mas às vezes o que precisamos é nos aproximar de quem somos”, opina a atriz Maria Isabel Díaz.

Essa noção de uma "viagem para dentro de si", como a intérprete cubana pontuou na conversa com os jornalistas, é tanto uma síntese do que o cinema é capaz de atingir, provocando espectadoras e espectadores para submergirem naquela narrativa ao mesmo tempo em que lidam também com sensações e tensões decorrentes da fruição do espetáculo, como uma janela para se discorrer sobre tudo. O percurso de Celeste é, decerto, bem distinto do que de Pedro em Greta, porém ambos os filmes trazem no seu cerne o deslocamento da sua personagem principal, um motivo com muito potencial dramático para catalisar imagens e enredos.

O mesmo pode ser dito do curta-metragem Marie, de Leo Tabosa, o único filme pernambucano selecionado para a disputa de prêmios. Marie veio ao Cine Ceará referendado pela estreia arrebatadora em Gramado, de onde saiu com um prêmio especial do júri para as atrizes Wallie Buy e Divina Valéria. Curiosidade: aqui, em Fortaleza, passou em uma versão maior - 25', em oposição aos 20' da cópia exibida no Rio Grande do Sul. O que mudaram, segundo o roteirista e diretor, foram apenas a duração de planos - elogios à bela fotografia de Petrus Cariry - e diálogos. Permaneceu a potência de um "road-movie funerário", como o filme chegou ser descrito no debate que se seguiu à exibição.

Marie (Wallie Buy, do Teatro Oficina), outrora Mário, volta ao sertão para o enterro do pai. Faz duas décadas que ela não pisa no árido solo da terra que lhe pariu e de onde fugiu. A tia (Divina Valéria, uma das divinas divas, em participação luminosa) recebe essa criatura cujo corpo desafia a normatividade da pequena cidade, das vidas que não ousam ir além, mas é no encontro com Estevão (Rômulo Braga), amigo de infância cujo afeto, em algum momento, se perdeu, que se instauram o desvio da rota e o ímpeto de um novo ciclo.


Curta-metragem Marie. Foto: Juarez Ventura/Divulgação

Pergunto a Leo Tabosa justamente sobre a ideia de deslocamento em Marie e ele aponta que todos os seus trabalhos, na verdade, trazem a perspectiva de chegadas e partidas. "Morte e deslocamento, na verdade. Eu sou do sertão, gosto de voltar às raízes, de escrever sobre isso. Meus filmes trazem essa perspectiva, como Tubarão e Nova Iorque", diz, aludindo a seus curtas anteriores (2013 e 2018, respectivamente). Embora ele reconheça isso, é interessante salientar que esse mesmo corpo artístico não exala a uma pulsão letal, a algo em vias de se extinguir, e sim ao aroma de renovação, metamorfose, transformação.

Em Marie, transcendendo isso, também há a urgência do agora, seja na decisão política de Leo e do produtor Arthur Leite de escalarem uma atriz trans para interpretar a mulher trans do título ("passamos seis meses procurando, achávamos mulheres ou novas demais ou mais velhas e chegamos a quase fechar com uma atriz cis até que um produtor me sugeriu o contato de Wallie", conta Arthur), seja na correria que empreenderam para lançar o filme agora ("quem garante que haverá festival de cinema em 2020?", indaga Leo) ou seja ainda na protagonista que arrisca se deslocar. 
  

LUCIANA VERAS é repórter especial e crítica de cinema da Continente.

* A repórter viajou a convite da organização do festival.

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